As fortes chuvas que atingem o Rio Grande do Sul, as mais intensas registradas em território gaúcho em décadas, já deixaram dezenas de mortos, causaram estragos em 265 municípios, romperam uma barragem e desalojaram mais de 24 mil pessoas. Há ainda mais de 60 pessoas desaparecidas enquanto o mau tempo já provoca danos em outros Estados do Sul.
Os governos federal e estadual criaram uma força-tarefa e tentam evitar mais mortes promovendo evacuações e retirando pessoas de áreas de risco.
Mas a responsabilidade não é apenas dos governos estaduais e federal, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (OC), mas também do Congresso — pois as tragédias são resultado da falta de adaptação e de combate às mudanças climáticas, duas áreas onde os Executivos precisam fazer mais e onde o Legislativo têm promovido ativamente retrocessos, na opinião dele.
“A maioria conservadora tem aprovado diversos projetos considerados nocivos para o meio ambiente. Nunca tivemos um Congresso tão dedicado a desmontar”, afirma o especialista em políticas públicas à frente do Observatório do Clima, rede de entidades que monitora a questão climática no Brasil.
Além disso, segundo Astrini, ações que se limitam às respostas de emergência em situações de crise não são suficientes. Eventos extremos como esse — cada vez mais comuns por causa das mudanças climáticas — não podem mais ser tratados como “imprevistos”.
Embora nem sempre seja possível prever com precisão a intensidade de um evento extremo, já sabemos que eles se tornarão mais frequentes — e quais as medidas que precisam ser tomadas para nos adaptarmos a eles, afirma o especialista.
Modelos climáticos preveem há décadas um aumento de chuvas extremas no sul da América do Sul, incluindo toda a bacia do Prata (formada pelos rios Paraná e Uruguai), lembra Astrini.
“O maior problema que a gente enfrenta neste momento não é a previsão, é a aceitação”, afirma Astrini. “A gente precisa aceitar que, infelizmente, esse é o novo normal. Mas não basta aceitar pacificamente, é preciso aceitar e tomar atitudes.”
“Todo ano o governo do Rio Grande do Sul fica extremamente espantado que as chuvas são intensas. O governo do Rio de Janeiro fica super surpreso quando acontece em Petrópolis. É uma surpresa em São Sebastião (SP), no norte de Minas Gerais, em Recife (PE), no sul da Bahia. Só que acontece que já faz nove anos consecutivos que as médias de temperatura do planeta são as mais quentes já registradas. Não tem mais surpresa. A gente precisa se preparar para isso”, afirma Astrini.
Mitigação, adaptação e redução de danos
Astrini explica que existem três tipos de resposta possíveis diante da crise climática: a mitigação das causas, a adaptação em preparação para as consequências e a redução de danos diante das tragédias.
“Mitigação é quando você ataca o problema: é quando você interrompe o desmatamento, quando você tira uma termoelétrica de operação, quando substitui uma fonte poluente por uma fonte renovável”, afirma o especialista.
“A adaptação é quando o problema vai acontecer e você começa a adaptar principalmente as populações mais vulneráveis ao problema. Por exemplo, quando tira as populações da área de risco, quando dá mais assistência para um pequeno agricultor lidar com uma seca.”
As ações também são necessárias contra problemas que não necessariamente são causados pelo aquecimento global, embora agravados por ele, explica Astrini.
“Adaptação é também quando você reforça a rede de saúde, porque vão aumentar os casos de dengue, porque o ciclo de reprodução do mosquito vai ficar mais longo por causa de chuvas desproporcionais e do calor prolongado.”
Já lidar com as perdas e reduzir os danos é promover as respostas emergenciais às tragédias.
“Perdas e danos é o que se faz normalmente: desbarrancou, você vai procurar sobreviventes, vai construir casas”, diz Astrini. O problema, na visão do especialista, é que as ações tomadas por autoridades federais, estaduais e municípais tendem a se concentrar apenas nesse terceiro estágio de resposta.
“O pessoal só age quando já está no nível da desgraça”, diz Astrini.
“O dinheiro investido na primeira camada vale muito mais, porque ele evita a adaptação e evita o desastre.”
Ações que estão sendo tomadas tanto pelo governo federal quanto pelo governo estadual e pelos municípios no caso das chuvas no Rio Grande do Sul — alertas da Defesa Civil, evacuação de pessoas de áreas de emergência, restabelecimento de serviços etc — se encaixam no terceiro tipo.
Após a região ser atingida por um ciclone em setembro do ano passado, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional repassou R$ 82 milhões para o governo do Estado e outros R$ 243 milhões aos municípios gaúchos para lidar com a crise. Segundo reportagem da CNN Brasil, a maior parte do dinheiro foi usada em ações emergenciais, como compra de mantimentos e desobstrução de estradas.
“A gente pode ter a Defesa Civil 30 vezes maior no Rio Grande do Sul ou em qualquer outro Estado. Vai continuar morrendo gente, porque a Defesa Civil vai conseguir salvar a vida de alguém próximo, mas não de todos. Quem salva mais vidas é o planejamento, e no caso dos municípios, o planejamento urbano”, afirma o líder do Observatório do Clima.
Embora o aquecimento global seja um problema em escala mundial, ações de mitigação não são responsabilidade apenas de entidades internacionais e governos nacionais. Elas podem — e precisam — ser alvo também dos governos locais, diz Astrini.
“A mitigação é uma agenda de responsabilidade, não de ganho político. Vou pegar um exemplo aqui no Cerrado, que bateu o recorde de desmatamento nesse último período: mais de 60% de aumento de agosto do ano passado para cá. E quem dá as autorizações de desmatamento são os governos estaduais”, diz ele.
“E há vários outros exemplos, como legislações de licenciamento ambiental mais frouxas nos Estados, a responsabilidade com o saneamento básico, com a transição energética.”
O governo do Rio Grande do Sul não respondeu ao pedido de informações sobre ações de mitigação e adaptação da BBC News Brasil. O governador Eduardo Leite (PSDB) tem dado atualizações diárias sobre as medidas emergenciais tomadas no Estado, que incluem alertas e remoção das pessoas das áreas de risco.
‘Deputados e senadores também são responsáveis’
Astrini diz ainda que é preciso lembrar da responsabilidade do Congresso em relação à situação climática que leva à tragédias como a sofrida pelo RS neste momento.
“Deputados trabalham dia e noite para destruir a legislação ambiental do Brasil com afinco. Neste momento estão querendo acabar com a Lei de Licenciamento Ambiental, querem acabar com a reserva legal na Amazônia, querem acabar com as reservas indígenas”, diz Astrini.
Ele se refere a um um projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, permitindo que Estados e Municípios determinem os projetos que precisam ou não fazer uma análise de impacto, entre outras medidas.
Os defensores do PL argumentam que ele “diminuirá a burocracia” e por isso facilitaria o desenvolvimento econômico.
Mas Astrini diz que o projeto não só não resolve o problema da burocracia como pode comprometer metas de desenvolvimento sustentável.
“A gente nunca teve um Congresso tão agressivo nesse esforço para desmontar a legislação ambiental no Brasil”, afirma.
Deputados e senadores contrários a pautas importantes para ambientalistas argumentam que a legislação ambiental atrapalha o desenvolvimento econômico e, em alguns casos, negam dados científicos sobre o aquecimento global ou sobre desmatamento no Brasil.
“Tem dois momentos em que o Congresso ajuda o Brasil na área ambiental: no recesso do meio do ano e no recesso do final”, diz Astrini.
Para Astrini, o governo federal vem falhando na disputa com os deputados e senadores pelas pautas ambientais, embora tenha um bom projeto para a área.
Ele cita, por exemplo, o fato de a bancada governista ter sido liberada para votar em qualquer sentido (em vez de receber a orientação para votar contra) o marco temporal para as terras indígenas.
“A gente nunca teve um Ministério do Meio Ambiente com tanto apoio no governo. É a primeira vez que um presidente fala em desmatamento zero e tolerância zero para desmatadores. Você tem um ministro da Economia que faz conversas sobre o meio ambiente, um Ministério dos Povos Indígenas… Mas mesmo assim as coisas não estão andando como deveriam”, afirma.
Além na tragédia no Sul, há outras notícias negativas na área. O Norte registra número recorde de queimadas de janeiro a maio deste enquanto a greve de servidores dos dois principais órgãos de fiscalização ambiental do país —Ibama e ICMBio— já dura mais de 100 dias.
Para o especialista, não se trata apenas de uma questão de orçamento mais robusto para ministérios da área —que também é importante — mas da capacidade de integrar essa visão em todos os setores.
“Quem causa o problema de emissões do Brasil? São os atores no setor do Ministério da Agricultura. E no Ministério das Minas e Energia. São esses ministérios que têm que ter programas e investimentos para diminuir as emissões de seus setores”, afirma Astrini. “O Ministério do Ambiente pode multar uma área que já foi desmatada, mas para as ações de mitigação você precisa da ação de todos os agentes.”
A BBC procurou o governo federal para falar sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
O governo, que apesar de não ter maioria no Congresso conseguiu aprovar agendas suas como o novo arcabouço fiscal, não tem “comprado a briga” nas pautas ambientais, opina Astrini.
No caso do marco temporal para as terras indígenas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva até tentou barrar a aprovação da lei que limita a demarcação, mas seu veto foi derrubado pelo Congresso.
A tese do marco temporal é de que apenas áreas ocupadas por indígenas em outubro de 1988, momento em que a Constituição Federal foi promulgada, poderiam ser demarcadas.
Movimentos indígenas questionam a tese porque havia terras que, naquele momento, não eram ocupadas porque seus habitantes originários haviam sido expulsos por invasores. Já os ruralistas alegam que não estabelecer um marco temporal criava insegurança jurídica.
Além de um direito dos povos originários, a demarcação de terras indígenas é considerada por ambientalistas e pesquisadores uma das principais formas de preservação da mata nativa brasileira — hoje as reservas impedem o desmatamento de diversas áreas cujo entorno foi devastado.
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Astrini também critica o fato de pautas ambientais terem entrado no cabo de guerra entre o Supremo e o Legislativo, virando parte de uma disputa de poder mais do que uma discussão sobre políticas públicas.
O Senado e Câmara têm entrado em rota de colisão com o STF em diversos temas, em uma disputa sobre os limites de cada poder.
A questão do marco temporal, inclusive, só teve a sua votação acelerada como resposta da bancada ruralista a uma decisão do STF de 2023.
Na época, a Corte rejeitou a tese do marco, que era baseada em uma situação jurídica ambígua. Logo em seguida o Congresso aprovou uma nova legislação determinando a existência de um marco temporal.
“Em algumas áreas, como essa do marco temporal, o Congresso tem usado a questão para atacar os indígenas e o Supremo.”
Além das decisões recentes tomadas pela maioria conservadora do Congresso e de projetos em tramitação, Astrini critica a postura pública de deputados e senadores em relação a temas ambientais.
“São os homens privilegiados, com espaço, que falam com seus eleitores e formam opinião pública. Eles não cansam de repetir que essa coisa de meio ambiente, de regra ambiental, é uma besteira”, diz Astrini. “Mas aí as consequências chegam e a responsabilidade é de quem?”
Para o secretário-executico do OC, esses parlamentares “incentivam quem quer desrespeitar a leis ambientais e prejudicam quem quer fazer certo”. “Então eles têm enorme responsabilidade por situações como essa (no Rio Grande do Sul) e têm que ser cobrados por isso.”
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