A Amazônia se tornou o principal mercado no Brasil da Starlink, empresa de internet via satélite do bilionário sul-africano Elon Musk.
Na quinta (29), a companhia ganhou holofotes ao ter suas contas bancárias suspensas por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
A medida foi estabelecida pelo ministro para garantir o pagamento de multas estipuladas pelo descumprimento de decisões sobre o bloqueio de perfis de investigados pela Corte na rede social X (antigo Twitter), que também pertence a Musk.
Lançada na região em setembro de 2022, a Starlink já é líder isolada entre os provedores de banda larga fixa por satélite na Amazônia legal, com antenas instaladas em 90% municípios da região até julho deste ano, segundo um levantamento exclusivo da BBC News Brasil.
A maior parte destes clientes estão em regiões de difícil acesso na Amazônia, onde não há infraestrutura tradicional de internet de banda larga.
Em maio de 2022, depois de apertar as mãos do então presidente Jair Bolsonaro em um resort de luxo no interior de São Paulo, o empresário disse estar “super animado para o lançamento da Starlink para 19 mil escolas desconectadas em áreas rurais e monitoramento ambiental da Amazônia”.
A promessa não saiu do papel, segundo o ministério da Educação e secretarias estaduais informaram à reportagem.
Mas dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) analisados pela BBC News Brasil em outubro de 2023 revelam que a empresa já tem clientes privados em 697 dos 772 municípios da Amazônia legal (formada por Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão).
A Starlink possibilita avanços importantes, como a possibilidade de uso de cartões de crédito e débito e Pix em cidades que não tinham internet de alta velocidade. Mas a expansão da tecnologia de Musk também impulsiona atividades ilegais, apontam autoridades brasileiras à BBC News Brasil.
“O Ibama informa que se tornou recorrente encontrar antenas Starlink nos garimpos”, afirmou o órgão à reportagem.
Imagens obtidas com exclusividade pela BBC mostram antenas da empresa de Musk junto a armas, munição e ouro recolhidos em operações da Polícia Federal e do Ibama.
O domínio da empresa na conexão de regiões isoladas levanta questões sobre segurança e soberania nacional, segundo especialistas brasileiros e estrangeiros ouvidos pela reportagem, especialmente depois da controvérsia recente sobre a dependência ucraniana de antenas da Starlink na guerra contra o Exército russo (veja mais abaixo).
Entre todos os 124 municípios que formam a faixa de fronteira da Amazônia legal com outros países, segundo o levantamento feito pela reportagem, apenas um não possuía antenas Starlink até o mês de julho.
Procurada diversas vezes, a empresa liderada por Elon Musk não respondeu a pedidos de comentários da BBC News Brasil sobre sua rápida expansão no Brasil, a promessa de internet em escolas, e o uso de sua tecnologia para atividades criminosas na floresta.
Soberania nacional
A Starlink revolucionou o mercado ao lançar uma enorme constelação de satélites que orbita o planeta em baixa altitude, tornando a velocidade de conexão entre os satélites e o solo mais rápida.
Mais de 5 mil satélites Starlink já foram lançados no espaço, disse à BBC News Brasil a Celestrak, laboratório norte-americano que monitora satélites.
Este enorme conjunto permite à empresa de Elon Musk levar conexão de qualidade à internet a lugares remotos e distantes, onde não há infraestrutura local como cabos e postes — caso de boa parte da Amazônia.
Mas isso pode colocar decisões importantes sobre países e governos nas mãos do empresário.
A Starlink virou alvo de debates sobre segurança de dados no mundo todo no início de setembro, quando Elon Musk admitiu não ter permitido que o governo da Ucrânia tivesse acesso à rede Starlink para evitar relação com o que definiu como um “grande ato de guerra”.
“Se tivesse concordado com o pedido, a SpaceX (empresa que envia os satélites usados pela Starlink para o espaço) seria explicitamente cúmplice de um grande ato de guerra e escalada de conflitos”, disse Musk, que foi criticado por autoridades ucranianas.
À BBC News Brasil, o professor T.S. Kelso, ex-chefe do Instituto de Tecnologia e da Divisão de Análise Espacial do Comando Espacial da Força Aérea dos Estados Unidos, disse que o debate sobre soberania nacional é “especialmente significativo”.
“Sistemas de comunicação são frequentemente mantidos sob controle governamental por vários motivos, da prevenção de comportamentos ilícitos à supressão de dissidências”, ele diz.
“É de vital importância para a segurança nacional, por exemplo, para a Defesa, ter sistemas de comunicação seguros e confiáveis. Permitir que qualquer empresa – ou indivíduo – decida unilateralmente estas questões parece ter sérias implicações para a segurança nacional”, continua.
O especialista em antropologia da tecnologia David Nemer, professor da Universidade da Virginia (EUA), concorda.
“Quando a gente fala de internet, não está falando só de Twitter ou Facebook. Falamos de serviços vitais para o funcionamento de uma cidade. Dar esse poder à Starlink é muito preocupante”, avalia.
O Ministério da Defesa disse à reportagem que não se posicionaria sobre o tema.
Garimpo
Ouro, armas, munição pesada e antenas Starlink viraram “o novo normal” em apreensões de forças de segurança brasileiras em áreas de garimpo ilegal, segundo um porta-voz do Ibama informou à BBC News Brasil.
De acordo com o órgão, do início do ano até o dia 4 de setembro, 32 termos de apreensão de antenas foram realizados em operações de combate ao garimpo ilegal.
Só na última grande operação contra garimpeiros em terras indígenas no rio Tapajós (PA), cinco antenas Starlink foram apreendidas ou destruídas.
“Em geral as antenas são colocadas nos acampamentos e nas dragas de garimpo”, disse o órgão.
O acesso à internet de alta velocidade facilitou o trabalho de garimpeiros e traficantes de madeira e drogas da região, afirmam especialistas.
Até a chegada da empresa, o principal meio que eles tinham em locais isolados para se comunicarem sobre a chegada de carregamentos ou operações de repressão da Polícia Federal era o rádio.
“Agora eles fazem tudo por WhatsApp”, diz um funcionário da Polícia Federal que pediu anonimato.
Para o professor Nemer, da Universidade da Virginia, o uso das antenas em garimpos “não é uma surpresa”.
“Um dos argumentos com os quais Elon Musk tenta promover a Starlink é o de levar a internet para onde a internet jamais chegou. Mas estes são lugares precarizados, onde as pessoas não têm meios para comprar e manter uma conexão de internet por satélite, que ainda é extremamente cara”, diz.
“Essa propaganda sobre inclusão digital é uma falácia, um mito. Quem de fato pode bancar esses serviços são pessoas com algum poder financeiro (…) Então não me surpreende que essas essas antenas tenham caído nas mãos de garimpeiros, já que eles têm condição de pagar.”
O valor inicial da mensalidade Starlink no Brasil é de R$ 185 reais. O kit de instalação custa a partir de R$ 1.400 — mas revendedores chegam a cobrar até R$ 5 mil pela antena em locais remotos da Amazônia em grupos de garimpeiros.
Transformação em comunidades isoladas
A tecnologia, ao mesmo tempo, trouxe transformações positivas a cidades e comunidades distantes dos grandes centros.
Em janeiro, indígenas yanomami instalaram uma antena Starlink que agora permite a comunicação em alta velocidade entre profissionais de postos de saúde e familiares de doentes em comunidades isoladas da Terra Indígena.
“Nossa internet está funcionando perfeitamente”, disse à BBC News Brasil Junior Yanomami, presidente da associação yanomami Urihi.
“Tem ajudado de forma excepcional, tanto para equipe de saúde, que diariamente repassa informações e solicitações de resgate, como para os yanomami, que nos comunicam sobre tudo que acontece na região em que está instalada a internet”, completa o líder indígena.
Em cidades em Roraima e no Acre, moradores finalmente podem usar cartões de débito ou crédito — e até mesmo fazer pagamentos via Pix —, graças à estabilidade e velocidade da conexão à internet via Starlink.
“Eu passei dez dias com o pessoal yawanawá lá no Acre e foi uma experiência muito interessante. A internet (Starlink) é uma coisa nova no território deles (…) e facilitou muito essa comunicação entre as aldeias”, afirma David Nemer.
“Eles fazem trocas e estão o tempo todo lidando com o ‘homem branco’ nas cidades. Eles têm conta bancária, e é mais fácil realizar transações bancárias. A internet facilita muito a venda de artesanatos. (…) É algo que eles ainda estão explorando e investigando, então é um pouquinho cedo pra ver o que, de fato, a longo prazo, isso pode trazer para o território.”
Controvérsia sobre escolas
Elon Musk usou sua conta pessoal no Twitter para anunciar “o lançamento da Starlink para 19 mil escolas desconectadas” na Amazônia em maio de 2022, meses antes do início das atividades da empresa na região Norte do país.
Mais de um ano depois, a BBC News Brasil consultou o ministério da Educação, e secretarias de educação de todos os Estados que formam a Amazônia legal sobre o andamento do programa.
“Verificamos junto à área de Tecnologia e Inovação da Educação Básica que não existe parceria formal, no âmbito do Ministério da Educação (MEC), com a Starlink”, informou o órgão federal.
A secretaria de Educação e Desporto de Roraima informou que “até a presente data, nenhuma escola da rede estadual de ensino possui internet via Starlink”.
O governo do Pará disse que “o referido anúncio de parceria entre o governo passado e a Starlink não beneficiou as escolas paraenses” e que está preparando uma licitação própria para expandir a digitalização escolar.
O governo do Tocantins afirmou que “escolas públicas do Estado não receberam nenhum sinal de internet via Starlink.”
A secretaria do Maranhão informou “que não tem parceria com a empresa”.
Os governos de Amazonas, Amapá, Rondônia, Mato Grosso e Acre não responderam à reportagem.
*Esta reportagem foi publicada originalmente em outubro de 2023 e atualizada em 8 de abril de 2024.
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