Entre as imagens da tragédia climática no Rio Grande do Sul, nenhuma explicitou os danos sofridos pela infraestrutura gaúcha como a do Boeing 727-200 da companhia Total Cargo com água na altura dos pneus na pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre. A cena comprovou que a enchente não havia poupado nem mesmo o único aeródromo internacional do Estado mais meridional do Brasil.
Fechado no dia 3 de maio, o Salgado Filho está no centro de um impasse entre o governo federal e a concessionária Fraport Brasil – Porto Alegre. Oficialmente, o dilema resume-se a uma pergunta: quem custeará os reparos no aeroporto?
Por trás dos aspectos financeiros e legais, porém, pairam diferenças entre as partes que remontam à privatização das instalações, há sete anos, passando pelos prejuízos decorrentes da pandemia do novo coronavírus e chegando ao xadrez eleitoral no Estado e no país.
Com uma área de 72 mil metros quadrados na zona norte da capital, o aeroporto fica em um terreno baixo em relação ao leito do Rio Gravataí, que atravessa a região antes de desaguar no Lago Guaíba. Com a cheia, a água avançou pelas avenidas de acesso, cobrindo pista, dois terminais de passageiros, hangares e outras dependências.
Vital para a malha aérea do Cone Sul, o Salgado Filho recebeu 8 milhões de passageiros em 2017, um ano antes de ser entregue à iniciativa privada. Antes da enchente, registrava mais de 1,3 mil voos nacionais e internacionais por semana. O prejuízo mensal causado pela interdição à economia gaúcha é estimado em R$ 400 milhões mensais pelo vice-governador Gabriel Souza (MDB).
Além da importância econômica, o aeroporto tem valor simbólico para os gaúchos. Criado em 1923, foi rebatizado em 1951 homenagem ao ex-ministro da Aeronáutica Joaquim Pedro Salgado Filho, morto no ano anterior em acidente aéreo no interior do Estado. Seu entorno abriga o Monumento do Laçador, estátua em bronze de 4,45 metros de altura que é considerada símbolo de Porto Alegre.
Enquanto o Boeing da Total levou mais de um mês para ser resgatado da pista alagada, as negociações para a reabertura do Salgado Filho arrastam-se há 70 dias sem solução à vista.
Inicialmente, a Fraport afirmou que seria preciso aguardar até que a água baixasse para avaliar a extensão do prejuízo. O fechamento do aeroporto, previsto num primeiro momento para durar até o dia 30 de maio, já foi prorrogado por duas vezes pelas autoridades aeroportuárias – o prazo mais recente é setembro.
A concessionária condiciona qualquer definição à conclusão de uma perícia técnica na pista de 3.200 metros. Os resultados do estudo, prometidos inicialmente para a primeira semana de julho, serão divulgados pela Fraport “em momento oportuno”, segundo a assessoria da empresa.
Nas primeiras semanas, governo federal e Fraport conseguiram manter os lances mais ruidosos da queda de braço longe dos olhos e ouvidos do público. A trégua foi mantida à custa de medidas paliativas – como a realização de pousos e decolagens de voos comerciais na Base Aérea de Canoas, distante 8,6 quilômetros do Salgado Filho. Prevaleceu também um relativo consenso entre as forças políticas e sociais do Estado de que, em caso de uma franca abertura de hostilidades como tantas vezes na história gaúcha, todos sairiam perdendo.
O jornalista Leandro Demori, do portal ICL Notícias, responsabilizou no início de junho a Fraport por suposta omissão no serviço de drenagem da pista do Salgado Filho. Para sustentar a denúncia, invocou o contrato de concessão, assinado em 2017 pela União e pela companhia, que aloca riscos ao poder concedente (União) e à concessionária (Fraport).
“A Fraport disse estar a par ‘da situação geológica do aeroporto’, segundo o contrato. Além disso, no item 5.5, declara ‘ter pleno conhecimento da natureza e extensão dos riscos por ela assumidos no contrato’”, afirmou Demori, catarinense que cresceu em Nova Petrópolis, na Serra gaúcha.
A tensão esteve a ponto de explodir no dia 11 de junho, quando a CEO da Fraport Brasil, Andrea Pal, disse a uma comitiva de parlamentares em visita ao aeroporto: “Se não recebermos dinheiro, não quero ser negativa, mas qual é a nossa possibilidade? Devolvermos a concessão e entra outro”.
A declaração foi dada em resposta a uma pergunta da deputada federal Maria do Rosário (PT) sobre qual seria a contribuição da empresa para as obras de recuperação. A parlamentar é candidata à sucessão do prefeito Sebastião Melo (MDB) na capital.
O diálogo foi gravado em vídeo e postado no X (ex-Twitter) pelo também deputado federal Marcel van Hattem (Novo). “Se não houver interferência do governo federal, e urgente, não vai acontecer (a reabertura)”, disse o parlamentar.
O tuíte provocou 2 mil comentários, a maioria de usuários questionando a coerência de Van Hattem, que se define como liberal, por defender socorro estatal à Fraport. A publicação acabou marcada pelo X com uma “nota da comunidade”, recurso por meio do qual usuários podem “adicionar colaborativamente notas úteis a posts que possam ser enganosos”, de acordo com a plataforma.
Em reunião com representantes do governo federal, no Palácio do Planalto, no dia 18 de junho, com participação do CEO global da Fraport, Stefan Schult, por videoconferência, a empresa negou que pretenda devolver a concessão do Salgado Filho.
“Eu fiz essa pergunta (sobre a devolução da concessão) oficialmente ao CEO da Fraport, e ele colocou que aquela foi uma fala inoportuna da representante no Brasil, e reafirmaram o compromisso de apostar no Brasil, não só no Salgado Filho, mas em outras oportunidades de concessões que possam surgir no país”, disse o ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, à Agência Brasil, ao final da reunião.
À BBC News Brasil, por e-mail, a assessoria da empresa afirmou: “A concessionária está em tratativas com o governo federal para buscar as melhores soluções para que o aeroporto seja recuperado com a maior celeridade possível”.
A empresa, disse a assessoria, “acredita no trabalho de seus funcionários e na capacidade de recuperação do aeroporto”. Por isso, prosseguiu, “está atuando desde o primeiro dia para preservar a estrutura do aeroporto e iniciar os processos de limpeza e recuperação, dentro do possível, enquanto segue atuando em cooperação com o governo federal para uma solução ágil e eficiente para a situação”.
Questionada se a Fraport proporá ao governo dividir os custos das obras de recuperação e em que condições, a assessoria da empresa foi evasiva: “Estamos em diálogo constante com o governo federal e compartilhando o andamento das ações”. Sem se referir claramente a reparos, afirmou: “O levantamento das necessidades para a recuperação do aeroporto será apresentado ao governo federal nos próximos dias”.
Procurado pela BBC News Brasil, o ministro da Reconstrução do Rio Grande do Sul, Paulo Pimenta, afirmou que se manifestará depois de uma reunião com a concessionária na terça-feira (16).
Além dos principais envolvidos na negociação, outros atores políticos aguardam o desfecho do impasse. O governador Eduardo Leite (PSDB) decretou isenção de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) às operações para reconstrução do Salgado Filho.
Entre os produtos e serviços contemplados pela medida, estão operações e prestações internas, importação de bens, máquinas, equipamentos, partes, peças, componentes aeronáuticos, ferramentas, estruturas metálicas e instalações.
“O funcionamento do Salgado Filho é vital para nossa economia. Por isso, esperamos um pronto entendimento entre a União e a Fraport para que a abertura ocorra o quanto antes”, disse o governador após a assinatura do decreto.
A privatização do aeroporto, sacramentada em 2017 pelo governo do presidente Michel Temer (MDB), provocou controvérsia em razão do interesse de um único grupo pela concessão – o conglomerado alemão Fraport AG Frankfurt Airport Services Worldwide, que acabou obtendo o contrato por 25 anos – e as obras de ampliação da pista, que afetaram comunidades vizinhas.
A empresa, que assumiu as operações no ano seguinte por meio da Fraport Brasil – Porto Alegre, estabeleceu parcerias com companhias locais para as reformas. A pista foi ampliada de 2,2 mil metros para 3,2 mil metros, e o número de balcões de check in, duplicado, entre outras melhorias.
Por trás do impasse atual, há um contencioso relacionado à perda de receita da Fraport em razão da pandemia do novo coronavírus, entre 2020 e 2022, estimada em mais de R$ 270 milhões. Com base na alocação de riscos prevista no contrato, a União concordou em indenizar a Fraport por motivo de “ocorrência de eventos de força maior ou caso fortuito”, mas ainda não efetuou o pagamento.
O contrato estabelece, porém, uma exceção a essa provisão: “exceto quando a sua cobertura (dos riscos) possa ser contratada junto a instituições seguradoras no mercado brasileiro, na data da ocorrência ou quando houver apólices vigentes que cubram o evento”. A empresa não revela o valor do seguro contratado, mas a estimativa é de que seja de pouco mais de R$ 100 milhões, um montante modesto diante da escala da destruição.
No dia 27 de junho, o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) encaminhou ao Ministério Público Federal (MPF) documentos que supostamente indicariam descumprimento pela Fraport de normas municipais na execução de obras de drenagem do aeroporto. De acordo com o parlamentar, a atitude da companhia teria agravado a inundação que atingiu a zona norte da capital gaúcha.
O procedimento aguarda distribuição para um procurador da República, que, após análise dos documentos, poderá determinar instauração de inquérito, arquivamento do caso ou outras medidas.
A Fraport afirmou à BBC News Brasil que “o sistema de micro e macrodrenagem no aeroporto de Porto Alegre, que trouxe benefícios diretos à população do entorno, foi devidamente autorizado e acompanhado pelas autoridades”.
E acrescentou: “Era sabido, desde o momento que a Fraport assumiu a gestão do aeroporto de Porto Alegre, que o sistema da pista apresentava problemas de segurança devido às inundações, causadas pelo mau funcionamento do conduto forçado. Apesar de não fazer parte do escopo do contrato de concessão, a Fraport investiu cerca de R$ 170 milhões em um robusto sistema que atende às normas de drenagem do município”.
Enquanto o aeroporto não é reaberto, indivíduos e empresas que dependem de transporte aéreo tentam driblar as dificuldades com otimismo.
“O movimento baixou, mas a gente está vendendo. O turismo é muito resiliente, aprendemos a lidar com crises. Estamos fazendo um trabalho para que o gaúcho vá à Serra no inverno a fim de compensar a ausência de turistas de outros Estados. Há coisas acontecendo, a economia tem de girar”, afirma Chay Amorim, vice-presidente financeira da Associação Brasileira de Agências de Viagem do Rio Grande do Sul.
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