Os incêndios que se alastraram pelo interior de São Paulo, cobrindo o céu de muitas cidades e causando pânico e evacuações, chamou atenção para o uso do fogo nas chamadas queimas controladas da agricultura.
A situação é bastante comum no cultivo de cana-de-açúcar — os recentes incêndios atingiram principalmente os canaviais, queimando 100 mil hectares de lavouras e causando um prejuízo milionário aos produtores.
Os questionamentos se intensificaram quando um vídeo que mostra essa prática viralizou nas redes sociais.
Nas imagens, funcionários da usina da Delta Sucroenergia colocam fogo em uma plantação de cana.
Até o dia 8 de setembro, 6,2 mil focos de incêndio foram registrados no Estado de São Paulo, sendo a maioria deles (pouco mais de 2,6 mil) em um só dia, 23 de agosto. É o maior desde 1998, quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) começou a fazer este tipo de levantamento.
A Delta refutou as acusações levantadas em redes sociais ao dizer que a queima havia sido feita em maio no interior de Minas Gerais, reforçou que a prática está prevista em lei e que toma medidas contra a propagação de incêndios nas plantações de cana.
“As autoridades ambientais, cientes do vídeo, estiveram no local e não constataram irregularidades”, disse a empresa em nota.
Esse tipo de queima controlada da palha da cana-de-açúcar ainda é realizada no Brasil, principalmente no Nordeste.
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a técnica é usada quando o terreno de cultivo é mais acidentado, o que impede o uso de máquinas para a colheita.
Também ajuda a aumentar a produção e reduz a carga de trabalho para quem colhe a cana manualmente.
Mas isso só pode ser feito em épocas e condições meteorológicas específicas, com autorização e sob a fiscalização de autoridades.
Por que se queima canaviais?
Essa prática na agricultura e na pecuária é regulamentada pelo decreto federal 2.661, de 1998, e defina a queima controlada como “o emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais, e para fins de pesquisa científica e tecnológica, em áreas com limites físicos previamente definidos”.
No caso dos canaviais, a queima é usada antes da colheita para limpar as folhas secas e verdes, deixando a cana-de-açúcar limpa e adequada para ser cortada manualmente para então ser transportada e moída.
A queima está muito associada ao relevo de onde estão os canaviais. Ela é permitida onde o terreno é acidentado, o que não permite usar máquinas para fazer a colheita.
O uso do fogo para eliminar a palha facilita a colheita manual, aumenta a quantidade de cana que um trabalhador consegue cortar diariamente e reduz o esforço físico necessário.
O mesmo decreto que autoriza a queima estabelece que ela deve ser gradativamente eliminada onde o terreno não é tão inclinado e é possível mecanizar a colheita.
Mas há exceções.
“As lavouras de até 150 hectares, fundadas em cada propriedade, não estarão sujeitas à redução gradativa do emprego do fogo”, detalha outro trecho do documento.
Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) apontam que 93% da colheita de cana no país é mecanizada, sendo a região Nordeste a que apresenta o menor índice.
A reportagem da BBC News Brasil procurou o Ministério da Agricultura para falar sobre a queima da palha da cana-de-açúcar no Brasil, porém não obteve retorno até a publicação da reportagem.
Onde e como a queima é feita?
Isso quer dizer que áreas com terrenos planos como as do Estado de São Paulo, por exemplo, as queimadas da palha da cana-de-açúcar não devem ser feitas e já são proibidas, sendo a colheita 100% mecanizada, segundo o setor.
No entanto, em outras regiões do país onde o relevo é irregular, como Pernambuco, por exemplo, essa queima ainda é feita na maioria dos canaviais.
No Nordeste, apenas 30% da colheita da cana-de-açúcar é feita de maneira mecanizada, segundo Gerson Carneiro Leão, presidente do Sindicato dos Cultivadores de Cana-de-Açúcar de Pernambuco (Sindicape). Segundo ele, o principal motivo da baixa mecanização é o relevo.
“Nosso re1levo não é plano como em outros lugares do Brasil e as máquinas não conseguem fazer o corte por causa dessa irregularidade”, diz Leão.
“Existem empresas chinesas que estão criando máquinas para atuar em relevo com até 40% de inclinação e isso vai ajudar na colheita no nosso Estado.”
Leão explicou ainda que não há uma data para que essas máquinas cheguem ao Brasil e passem a fazer a colheita na região.
Apesar de afirmar que a mecanização da colheita da cana-de-açúcar é mais econômica para o produtor rural, Leão também diz que o corte manual faz com que o produto tenha maior rendimento.
“Com a máquina perde-se muita cana que cai pelo caminho ou que não é bem cortada, o rendimento do corte manual é melhor, além de a prática gerar empregos. Mas também esbarramos na falta de mão-de-obra”, acrescenta.
Além das legislações federais, Estados brasileiros têm criado regras e proibições regionalizadas para controlar a queima da palha da cana-de-açúcar, como estabelecer horários em que é possível fazer isso.
“Antes de fazer, é necessário pedir autorização da queima controlada, que é válida por três meses”, explica Jacigleide Soares, analista ambiental da Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco – CPRH.
“Tentamos acompanhar e controlar ao máximo com fiscalização para que as regras da sejam seguidas e, desta forma, impactar o menos possível no meio-ambiente.”
No Estado, por exemplo, a queima só pode ser feita se o vento estiver com baixa intensidade, no início da manhã, no final da tarde ou à noite e em áreas com aceiros com largura mínima de três metros.
O objetivo é que o fogo não se espalhe e a fumaça chegue o menos possível à área urbana.
Outras queimas autorizadas
O uso de fogo também é feito por alguns produtores rurais para o manejo de pastagem e limpeza de áreas rurais, ajudando na eliminação de resíduos, pragas e ainda na renovação do pasto a curto prazo.
Nesses casos, a queima controlada é permitida desde que haja autorização prévia dos órgãos estaduais competentes.
Cada Estado também tem autonomia para proibir essa queima controlada nos períodos de estiagem, como fez o Pará, que decretou situação de emergência no último dia 27 por conta dos incêndios.
Por meio de um decreto, o governador Helder Barbalho (MDB) proibiu a utilização de fogo no Estado para atividades de limpeza ou de manejo de áreas e pastagens pelos próximos 180 dias.
Danos à saúde e ao meio ambiente
No entanto, como ficou mais evidente com os incêndios sem precedentes recentes em todo o país, lavouras em chamas podem causar prejuízos.
O procedimento de queima emite uma espécie de fuligem composta por dezenas de partículas e gases que prejudicam a saúde e o meio ambiente.
Especificamente, a queima da palha da cana-de-açúcar pode causar, por exemplo, contaminação de solos e água, chuva ácida e danos à biodiversidade.
A longo prazo essa queima causa prejuízos mais profundos ao solo devido à perda de matéria orgânica, que pode demorar décadas para se recuperar, segundo o professor do departamento de Solos da Universidade Federal de Viçosa, Igor Rodrigues de Assis.
“A matéria orgânica e os microrganismos que ali vivem são fundamentais para a saúde do solo. Sem eles, as plantas passam a absorver menos nutrientes e água, fazendo com que a produtividade caia e a plantação também fique mais propensa a pragas. Um solo sem saúde vai refletir em uma população sem saúde”, diz.
A queima controlada da palha da cana-de-açúcar também traz danos à saúde da população, principalmente daquela que mora em municípios próximos aos canaviais.
A exposição à fumaça pode causar irritação nos olhos, narinas, olhos e garganta podendo gerar problemas de saúde como por exemplo, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e agravar outras doenças respiratórias como asma e rinite alérgica.
“Essa fumaça tem diversas partículas que quando inaladas agem como um corpo estranho em nosso organismo causando inflamações. Aquelas pessoas que não tem problemas de saúde, quando expostas podem começar a ter, inclusive problemas crônicos”, explica Maria Vera Cruz, pneumologista do Serviço de Pneumologia do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe).
Os principais poluentes emitidos durante a queima da palha da cana-de açúcar são monóxido de carbono, dióxido de enxofre, dióxido de nitrogênio e material particulado.
A queimada do canavial liberta para a atmosfera grandes quantidades de gases como CO2, N2O e CH4, que contribuem para o efeito estufa impactando a população como um todo.
Gases tóxicos, como monóxido de carbono e óxidos de nitrogênio, também são liberados, aumentando o risco e agravando doenças pulmonares e cardiovasculares.
“O ideal é que as pessoas evitem ao máximo inalar esse ar. Se for possível, evitar sair de casa ou então fazer uso de máscara quando for necessário ir às ruas”, diz a pneumologista.
“Não é preciso que seja uma máscara específica, qualquer uma já ajuda a amenizar a inalação dessas partículas. Além disso, é importante beber muita água porque ela ajuda a manter as narinas hidratadas, assim como todo o restante do corpo.”
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