A elite e a classe média paulista, de maneira geral, têm uma visão de sua própria identidade muito diferente da identidade nacional, diz o sociólogo e pesquisador Jessé Souza, autor de mais de 20 livros, como A Elite do Atraso (Editora Leya) e Classe Média no Espelho (Sextante).
Para o professor universitário, que também é ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), após a derrota de São Paulo no levante de 9 de julho de 1932 (revolta contra o governo de Getúlio Vargas), a elite local percebeu que precisava estabelecer domínio no terreno das ideias e disseminar a tese de que o paulista é diferente — superior — do povo do resto do Brasil.
Ele afirma em entrevista à BBC News Brasil que na época estavam surgindo as teorias sociológicas, importantes até hoje, de que o brasileiro é como o homem cordial, que trata de questões profissionais e públicas com base em suas relações pessoais — o que facilitaria a corrupção.
Mas, segundo Souza, ao mesmo tempo foi criada a ideia de que o paulista era “mais virtuoso” e não estava incluído nessa definição — o chamado excepcionalismo paulista.
“A ideia de que, porque São Paulo havia sido abandonado pelo Estado português [durante a colonização] os bandeirantes [que “desbravaram” o Estado] vão ser percebidos como pessoas que vão ter iniciativa, empreendedorismo, que vão montar o mundo pelas próprias mãos — exatamente no sentido em que eles percebem que o pioneiro protestante havia feito nos EUA”, afirma o sociólogo, em referência aos primeiros colonos que ocuparam o território norte-americano.
Ao mesmo tempo, diz ele, a chegada dos imigrantes europeus foi usada pela elite para reforçar a ideia de que o paulista é mais moral por ter uma herança europeia.
“Foi uma tática da elite para conquistar a classe média branca, porque para a elite é importante ter uma ‘tropa de choque’ que ela possa usar como arremedo de participação popular”, diz Souza, que também é formado em direito pela UnB (Universidade de Brasília) e em filosofia e psicanálise na New School for Social Research, em Nova York, nos EUA.
“Com essas duas coisas, quem é o condenável, quem é o criminoso se não o povo? O povo que não é branco europeu, nem elite — os brasileiros que são pobres e mestiços.”
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – A formação da identidade paulista é diferente da formação da identidade brasileira?
Jessé Souza – Muitas vezes ideias são disseminadas através de um processo de dominação elitista, mas esse processo é esquecido depois. Não é que as pessoas neguem, mas simplesmente tem um silêncio. Se você já conseguir convencer as pessoas daquela ideia, não precisa mais ficar batendo naquela tecla. Tem uma astúcia do poder nisso.
São Paulo é um estado extremamente importante. Eu moro em São Paulo há 6 anos e isso foi extremamente importante, porque fiz muitas entrevistas no interior e também na região sul. É um outro Brasil.
Primeiramente, é um Brasil branco, a maioria da população é branca — isso não existe no resto do Brasil. E tem essa enorme influência do estrangeiro, do imigrante europeu. Mas, para entender a diferença, é preciso compreender as ideias que dominavam a formação da identidade nacional e o que estava acontecendo em 1930.
BBC News Brasil – Quais eram essas ideias sobre a identidade nacional?
Souza – O pensamento de Sergio Buarque de Holanda é central nisso, ele vai criar os dois conceitos mais importantes da política brasileira até hoje — ideias que se espalharam pela sociedade, não ficaram só na cabeça dos intelectuais.
Primeiro é a noção de homem cordial como uma coisa só negativa [é a ideia de que o brasileiro age pela emoção e não pela razão, que ele tem um desejo de estabelecer intimidade e que todas suas interações sociais se dão com base nos afetos, nos valores domésticos, confundindo o público com o privado, o que favoreceria a corrupção].
Depois é a noção de Estado patrimonial [de que os assuntos públicos, de Estado, no Brasil, são tratados de modo pessoal], como se o Estado fosse a origem de toda corrupção.
Ele vai dizer que o povo brasileiro, como o homem cordial, é corrupto, é ladrão, não respeita as leis — é o domínio dos afetos. Isso vai montar a ideia de um ataque moral, porque se você é corrupto, inconfiável, se você retira a honestidade de alguém e diz que essa pessoa é corrupta, você a desumaniza.
Segundo Sérgio Buarque, isso teria a ver com a herança portuguesa de corrupção da Idade Média. Mas isso é uma acusação ridícula, para dizer o mínimo, porque na Idade Média não podia haver corrupção no sentido moderno. A corrupção no sentido moderno é do particular que rouba o bem público, mas a noção de bem público só passa a ser pensável a partir de 1789 [data da Revolução Francesa].
Para isso você precisa ter noção de soberania popular, que podem existir bens que não pertencem a ninguém individualmente, mas ao povo como um todo. E o mais estranho é que os intelectuais brasileiros vão olhar e falar: “Puxa! Veja como ele era crítico! Veja a verve crítica, a objetividade científica de perceber que o povo brasileiro é realmente a lata de lixo da história.”
No fundo, com essas ideias, você culpa de novo — e claro que não estava na cabeça do Sergio Buarque desse modo — o povo pelo seu próprio atraso sem tocar na palavra raça. Você transforma o racismo que até então era explícito em uma questão cultural, moral — um racismo cultural.
BBC News Brasil – O racismo deixa de ser explícito?
Souza – Não é que acabou o racismo, mas o racismo racial anterior havia sido interditado publicamente, você não pode voltar à ideologia racista de [Arthur de] Gobineau [teórico francês do racismo que acreditava que os brancos eram superiores e que o Brasil era povoado por raças inferiores e mestiços degenerados].
As mudanças dos anos 1930 no Brasil conseguiram barrar formas mais violentas e explícitas de racismo. É muito importante você fazer com que as pessoas se controlem e tenham pelo menos vergonha de serem racistas. Os EUA só foram ter isso nos anos 1960, com o movimento pelos direitos civis. Mas não acaba o racismo: você torna o racismo explícito não palatável, mas é claro que os afetos racistas estão lá.
BBC News Brasil – E que mudanças estavam acontecendo nos anos 1930?
Souza – Em 1930 [quando Getúlio Vargas se torna presidente] você tem o primeiro estadista brasileiro, no sentido de que ele tinha um projeto para a sociedade como um todo. Getúlio quer mudar a sociedade: modernizar e industrializar. Mas ele também quer inclusão popular.
Foi uma revolução de grandes proporções. Primeiro você destrona uma elite que estava no poder há 400 anos [a elite rural da República Velha] depois você vai montar a identidade nacional que não existia antes de Getúlio e de Gilberto Freyre.
Antes deles, existia o racismo cientifico explícito, de Gobineau, que todos os intelectuais brasileiros dessa época aderiram — mesmo aqueles que defendiam os negros. Joaquim Nabuco, por exemplo, que eu até admiro, queria um melhor tratamento, mas acreditava na inferioridade.
Mas no início do século 20, Gilberto Freyre cria a ideia do “bom mestiço”. Que é isso tudo que o brasileiro lembra quando pensa positivamente na brasilidade. Freyre vai dizer que essa característica afetiva do povo pode ser positiva, que você pode receber bem o diferente, dizer que o brasileiro tem calor humano, hospitalidade, sexualidade exuberante.
E Getúlio usa esse conceito para montar uma espécie de revolução cultural, porque você não vai construir uma identidade nacional com um povo que você considera a lata de lixo da história.
Nessa época você vai ter a propaganda do Estado dizendo: olha a nossa fonte é africana, não há problema nenhum com isso, aliás, é ótimo, porque a gente tem coisas que ninguém tem, o samba, futebol etc. Então pela primeira vez o negro e o mestiço são celebrados no Brasil.
Freyre é um cara muito mal compreendido. Claro que era um cara conservador na sua vida pessoal, mas intelectualmente era muito mais progressista do que outros pensadores da época. Mas Freyre falha no ponto em que ele não tem consciência de que essa dominação cultural e esse racismo cultural estão baseados no fato de que tanto nos EUA quanto na Europa, o racismo vem do fato de os brancos se verem como representantes do espírito.
O que é isso? São atributos do espírito a inteligência, o bom gosto estético, a moralidade e a honestidade. Tudo o que a gente acha virtuoso é ligado ao espírito, e o que é ruim vai estar ligado ao corpo: o sexo, a agressividade. Se você quer oprimir alguém, humilhar alguém, você tem que relacionar essa pessoa ao corpo.
É isso que fazem com as mulheres, é isso que fazem com os negros, é isso que fazem com as culturas oprimidas na América Latina, África e Ásia. Freyre não criticou isso, ele não percebia, mas ele vai tentar, dentro disso, pegar as “virtudes ambíguas do corpo” e destacar o positivo.
BBC News Brasil – E onde entra a questão da identidade do paulista neste cenário?
Souza – A elite de São Paulo já é a mais poderosa nessa época e ela vai ser contra Getúlio. Ela tenta, com a guerra — o levante de 9 de julho de 1932 — como todo mundo sabe, recuperar o poder. Mas ela é derrotada militarmente. O que essa elite vê? “Olha estamos perdidos se fomos para o confronto. O que a gente pode fazer?”
Você pode usar o domínio das ideias. Porque esses caras tinham não só as fazendas de café, as nascentes indústrias, mas editoras, jornais, rádios. Essa elite cria a Universidade de S. Paulo — e é claro que não estou acusando a USP, tem muita gente boa lá, mas obviamente foi uma etapa fundamental nesse processo de recriar uma hegemonia cultural elitista para o Brasil.
Então se cria a ideia de que o paulista é diferente — é algo que foi pensado, planejado é aí que entra o excepcionalismo paulista. É a época em que surge a ideia de homem cordial de Sergio Buarque, mas esse homem cordial não é o brasileiro em geral — o excepcionalismo paulista prega que os paulistas, e os brancos do Sul, são diferentes.
BBC News Brasil – Eles seriam diferentes como? Quais são os argumentos dessa ideia?
Souza – A elite de São Paulo já estava se vendo nos anos 1910, 1920 como uma espécie de equivalente funcional do pioneiro protestante americano. A ideia de que, porque São Paulo havia sido anteriormente abandonado pelo Estado Português — esse elemento supostamente corruptor — os bandeirantes [que “desbravaram” o estado] vão ser percebidos como pessoas que vão ter iniciativa, empreendedorismo, que vão montar o mundo pelas próprias mãos — exatamente no sentido em que eles percebem que o pioneiro protestante havia feito nos EUA.
Então os bandeirantes, caçadores de índios, vão ser travestidos de protestantes ascéticos. São Paulo deve desempenhar no Brasil, segundo essa leitura, o mesmo papel que que Massachusetts nos EUA — Estado que vai criar uma nova nação, moderna, racional etc etc.
E isso é importante, porque se a elite herdeira dos bandeirantes é como a americana, ela não é portuguesa como o povo. Então se o povo é corrupto, a elite paulistana não — ela passa a ser melhor, passa a ser o contrário.
E concomitante a isso, há a chegada dos imigrantes europeus — a grande leva é de 1890 a 1930 — 5 milhões de europeus brancos e vários outros vindo para o Brasil. E esses 5 milhões de brancos que estão chegando nessa hora se percebem como europeus, obviamente, pela origem recente — mas até hoje os descendentes no Sul e em São Paulo têm essa visão, têm o maior orgulho do nome.
A classe média branca que se forma — italiana em São Paulo e alemã no Sul — vai se perceber como diferente do povo, pois ela é europeia.
Então isso se junta ao fato de que a elite paulista já se via como diferente porque seria como a americana, empreendedora, como o protestante ascético. Então você tem o excepcionalismo paulista, a ideia de que o paulista é superior por causa de uma herança cultural europeia e uma moralidade americana. Então com essas duas coisas, quem é o condenável, quem é o criminoso se não o povo? O povo que não é branco europeu nem elite — os 80% de brasileiros que são pobres e mestiços.
BBC News Brasil – Mas de onde vêm essas ideias de valor e virtude do pioneiro americano protestante?
Souza – O que está por trás disso é a tese clássica de Max Weber sobre o protestantismo, que cria uma sociedade nova adaptada ao capitalismo, com disciplina, controle, o que é verdade. Mas os americanos usaram essa ideia para justificar o imperialismo, dizendo que o protestantismo ascético nos EUA torna o país a pátria da produtividade econômica, da democracia, e da honestidade, o que não é verdade.
BBC News Brasil – Mas por que a ideia de identidade paulista seria diferente de um simples orgulho regional, como por exemplo, um orgulho de ser pernambucano ou mineiro?
Souza – Não é a mesma coisa. O excepcionalismo paulista foi conscientemente construído. O orgulho do pernambucano, se você se perguntar, é o frevo, a comida, gente importante que nasceu lá. Você não tem, como no excepcionalismo paulista, uma interpretação, uma exegese [interpretação detalhada] de como funciona o mundo. Só São Paulo construiu isso. Justificando a ideia no passado longínquo, no começo da colonização, você vai dar ares de ciência.
BBC News Brasil – Esse tipo de pensamento perdura até hoje?
Souza – Um dado importante é que os seres humanos não percebem como eles são formados. Uma criança de 0 a 4 anos, ela vai “engolir” o pai e a mãe, e não é só o jeito de andar, falar, mas de perceber e avaliar o mundo — isso entra de modo pré-reflexivo. Isso é percebido pelas crianças em exemplos, emocionalmente. Se isso não foi criticado, tende a continuar indefinidamente.
E hoje essas ideias continuam, são ideias importantes do Brasil. Elas estão por trás do Bolsonaro — porque Bolsonaro tem o apoio da elite, de muitos brancos racistas, mas também de muita gente que é remediadamente pobre. O eleitor do Bolsonaro não é aquele que ganha menos de dois salários mínimos. É aquele que ganha entre dois e cinco salários. Ele vai ser muito tipicamente o branco pobre de SP e do Sul — onde Bolsonaro tem, ou tinha, maioria.
Por outro lado, Bolsonaro também tem também o apoio do pardo evangélico — que também se acha superior aos outros negros, mas pela conversão religiosa.
É sempre uma questão de distinção moral. Mas entre os pobres brancos do Sul, o cara pensa “como eu sou branco e ganho R$ 3 mil sendo que tem o cara que tem a mesma cor que eu e ganha R$ 20 mil?”.
Mas ele não consegue criticar, enxergar que ele também foi injustiçado e se unir com os outros injustiçados. Eles têm raiva, tem ressentimento, não sabem por que — e aí são muito facilmente manipuláveis porque se sentem inferiores. Se eu sou superior e não sou rico, a culpa não é minha.
Você é levado a odiar os negros, os mais pobres para explicar sua própria situação — não sobra dinheiro para mim porque o pessoal está usando para dar essa mamata para esse pessoal.
BBC News Brasil – Está ligado a uma ideia de meritocracia?
Souza – Isso está ligado à meritocracia, antes de tudo, na classe média branca — porque a elite tem o dinheiro e sabe que está comprando e mandando em tudo. Mas quando você diz que a classe média branca é a classe da moralidade, num país de gente corrupta, a classe média se torna a classe da meritocracia por excelência. E que é a meritocracia?
Você esquece todos os privilégios sociais que você está recebendo, desde o berço — e aí não é só dinheiro, isso é extremamente importante — você ter pais disciplinados que amorosamente tentam incutir disciplina nos filhos, o hábito de leitura, capacidade de concentração, capacidade de pensamento abstrato… Ninguém nasce com isso, isso é um projeto de aprendizado — e quase sempre familiar, principalmente nos primeiros anos de vida.
Então isso é uma extraordinária herança que o cara da classe média branca recebe de presente — e como essa transmissão é feita em tenra idade, ou seja, numa idade em que a gente nem sequer se lembra do que aconteceu, aparece como milagre da capacidade individual, do esforço.
É claro que esse cara vai ter ainda uma boa escola, uma escola melhor, tempo livre para que ele possa só estudar — o que não acontece com os pobres. Os pobres começam a trabalhar com 11, 12 anos.
Então é uma maldade e uma imbecilidade falar em meritocracia em um país como o nosso. Mas obviamente, a meritocracia vai ser uma forma adicional ao excepcionalismo paulista, ao racismo cultural, para ser uma forma de legitimação do capitalismo.
Mas essa ideia da meritocracia existe em todos os lugares. O Brasil vai construir, com excepcionalismo paulista, no sul, além da meritocracia, essa questão do racismo cultural, essa linha da honestidade, da moralidade.
BBC News Brasil – Como essa ideologia do excepcionalismo afeta a população não branca desses Estados?
Souza – Esses brasileiros mestiços e negros em São Paulo e no Sul — que são maioria no resto do Brasil — vão ser muito afetados por essa leitura. Eu chamo isso de racismo cultural.
É uma substituição do racismo racial, depois que o racismo racial foi interditado na esfera pública. Você tinha que colocar uma outra ideia para fazer a mesma coisa que o racismo racial fazia, contra as mesmas pessoas.
O racismo destrói a autoestima, destrói a autoconfiança. Se dizem: você é feio, você é preguiçoso, é corrupto, ladrão. O que diabos você vai fazer da sua vida?
Você não tem legitimidade, não é respeitado, não é reconhecido. Então esse tipo de leitura da realidade é um veneno. Ele vai retirar das pessoas vontade de vida, capacidade de sobrevivência. Você vai enfraquecer e criminalizar.
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