Mais da metade dos municípios brasileiros atravessaram o mês de julho em condição de seca, de moderada a extrema.
Essa classificação, feita pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) do governo federal, mede a gravidade da estiagem, partindo de seca fraca, moderada, severa e, por fim, extrema.
De acordo com o monitoramento, 404 cidades registraram seca extrema no mês passado, 1.361 seca severa e 1.068 moderada.
Em relação a junho, o monitoramento mostra que a situação se agravou: a quantidade de municípios com seca extrema aumentou quatro vezes, e com seca severa saltou de 918 para 1.361.
Para se ter uma dimensão do agravamento, em junho do ano passado, o número de cidades em situação de seca severa era 44.
A previsão para o mês de agosto é que este cenário piore ainda mais, especialmente no Amazonas, Acre, Mato Grosso, Pará, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais e São Paulo.
No Brasil, as secas são registradas oficialmente desde o fim do século 19. Mas desde o início do século 21, um novo fenômeno relacionado à estiagem vem sendo estudado no mundo: as secas-relâmpago.
“O termo foi definido por um grupo de pesquisadores americanos em 2002“, explica o pesquisador brasileiro Humberto Barbosa.
“E desde então, há vários estudos publicados, todos relacionando esse conceito às mudanças climáticas.”
Barbosa explica que, enquanto a seca normalmente é “silenciosa”, causando efeitos que não são visíveis logo no seu início, a seca-relâmpago é, como seu nome diz, mais rápida.
“A seca-relâmpago ocorre a partir de uma conjunção de fatores que inclui a redução de chuva, o aumento da temperatura acima da média, baixa umidade do solo e alta demanda evaporativa [quando mais água evapora da superfície e transpira das plantas, esgotando a umidade do solo rapidamente]”, explica o pesquisador.
Por ser repentina e causar grande estrago, o desafio é prever esse fenômeno para tentar mitigá-lo. E é nisso que Barbosa vem trabalhando, por meio de um sistema de inteligência artificial.
O projeto-piloto, que teve início há dois anos, foi desenvolvido tendo como foco o semiárido brasileiro, localizado na região Nordeste, e que historicamente sofre com a escassez hídrica. Mas a ideia é expandir as previsões para todo o território nacional.
Os dados já coletados apontam para secas-relâmpago mais extremas nas próximas décadas na bacia do rio São Francisco, em razão do aquecimento global.
A região abrange municípios dos Estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, além do Distrito Federal.
A pesquisa foi desenvolvida no Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), onde Barbosa é professor.
Para entender a dinâmica do fenômeno, alguns parâmetros são analisados, como temperatura, transpiração do solo e das plantas, cobertura vegetal e umidade do solo.
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Barbosa e sua equipe abastecem a inteligência artificial com essas informações para treiná-la. A ideia é que, futuramente, seja possível prever uma seca-relâmpago, usando essa previsão de alerta.
Barbosa acredita que, sabendo de antemão, será possível, por exemplo, preparar o solo para a estiagem.
O pesquisador alerta, no entanto, que as secas-relâmpago estão atreladas às mudanças climáticas. Isso significa que o fenômeno deve ser cada vez mais comum.
O cenário desenhado pelo Cemaden para o mês de agosto, com o agravamento da estiagem em especial nas regiões Sudeste e Centro-oeste, é semelhante ao previsto por Humberto Barbosa.
“A situação é muito crítica para o Sudeste e Centro-Oeste nos próximos meses”, afirma ele.
“Neste momento, há 70% de chances de termos a massa de ar seco atuando ainda em setembro e parte de outubro sobre a região. Será um ano crítico”.
Ele acrescenta que, inclusive, os fatores são favoráveis para tempestades de areia na região. “E podem ser muito mais intensas do que as anteriores”, diz.
Já no Norte do país, no Estado do Amazonas, foi declarado estado de emergência em 20 cidades no mês passado devido à seca.
Barbosa explica que as secas repentinas estão inclusive favorecendo o aumento nos focos de incêndio na Amazônia.
Seca é um processo
Mas, para Gilvan Sampaio, coordenador-geral de ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o que vem acontecendo, tanto na região Sudeste do país, quanto no Amazonas, não tem relação com secas-relâmpagos, fenômeno que ele refuta.
“A seca é um processo que leva meses, por isso eu não considero esse fenômeno das secas-relâmpago como existentes”, diz Sampaio.
De acordo com ele, a estiagem que castiga o Amazonas pelo segundo ano consecutivo é consequência do aquecimento das águas do Atlântico Tropical Norte.
“Quando a temperatura da água fica mais aquecida, o ar sobe, e, quando desce, desce mais quente também, impedindo a formação de chuva”, afirma Sampaio.
“Isso não tem relação com o El Niño, fenômeno que terminou em junho e causa um aumento de temperatura nas águas do Pacífico. O Atlântico Tropical Norte está aquecido há dois anos em decorrência do aquecimento global.”
Por outro lado, a seca no Sudeste e no Centro-Oeste é uma característica da estação que estamos vivendo, o inverno, de acordo com ele.
“Não há nenhuma novidade aí. Exceto por uma sensação de que o clima está mais seco, que é devido à temperatura que está mais alta, isso sim, associado ao El Niño”, diz Sampaio.
De acordo com o pesquisador, o aumento das temperaturas acaba bloqueando as frentes frias, que não conseguem chegar nas regiões e, consequentemente, a chuva não cai.
“Foi um bloqueio atmosférico, inclusive, que fez com que as chuvas ficassem presas sobre o Rio Grande do Sul em abril e maio”, explica.
Seguindo o brilho
Embora as secas-relâmpago não seja um consenso entre os pesquisadores, o fenômeno é reconhecido pela Nasa, a agência espacial americana.
Inclusive, a agência publicou um estudo recente mostrando que era possível detectar seus sinais até três meses antes do início.
Os cientistas descobriram que a chave para isso está no brilho das plantas, imperceptível a olho nu, mas detectados por satélites.
A explicação gira em torno de um processo químico. Durante a fotossíntese, quando a planta capta a luz solar para transformá-la em energia, sua clorofila acaba vazando alguns fótons não utilizados.
Trata-se de um brilho fraco, chamado tecnicamente de fluorescência induzida pela energia solar.
Quanto mais forte for a fluorescência, mais dióxido de carbono uma planta retira da atmosfera para impulsionar seu crescimento.
Esse brilho não é visto a olho nu. No entanto, é detectado por alguns instrumentos a bordo de satélites. É justamente aí que as previsões das secas-relâmpago começam.
Isso porque, os pesquisadores fizeram uma comparação de anos de dados de captação dessa fluorescência com um inventário de secas-relâmpago que atingiram os Estados Unidos entre 2015 e 2020.
O que os pesquisadores descobriram foi que, nas semanas e meses que antecederam uma seca-relâmpago, as plantas emitiram uma fluorescência muito mais forte. Esse sinal era reduzido à medida que o solo ficava mais seco.
Os pesquisadores compararam anos de dados de fluorescência com um inventário de secas repentinas que atingiram os Estados Unidos entre maio e julho de 2015 a 2020 e encontraram um efeito dominó.
Nas semanas e meses que antecederam uma seca-relâmpago, a vegetação inicialmente prosperou à medida que o clima foi ficando mais quente e seco.
De acordo com o estudo, as plantas florescentes emitiram um sinal de fluorescência “extraordinariamente forte” para a época do ano, o que, para os pesquisadores, foi um sinal de que a seca-relâmpago estava por vir.
A pesquisa de Barbosa também tem ligação com a Nasa, já que a agência manteve sua bolsa de doutorado pela universidade do Arizona, nos Estados Unidos.
Para o pesquisador, criar um sistema capaz de prever o fenômeno com alguma antecipação é uma das chaves para o enfrentamento das consequências das mudanças climáticas.
“Mesmo que a gente consiga fazer uma boa redução das emissões de gás carbônico, há um resíduo de emissões que vai manter essas secas pelos próximos anos e décadas”, diz o pesquisador brasileiro.
“As pessoas ainda não têm uma dimensão do impacto das mudanças climáticas na formação dessas secas-relâmpago.”
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