Na maior enchente registrada em Porto Alegre por mais de meio século, o rio Guaíba atingiu a cota de 4,76m. A capital gaúcha tinha, em 1941, 272 mil habitantes e as águas chegaram às moradias de aproximadamente 70 mil pessoas, além de inundar um terço dos estabelecimentos comerciais e indústrias então existentes. O desastre durou 40 dias.
No fim de abril deste ano, porém, a enchente histórica foi superada por um avanço das águas considerado impensável até então. O Guaíba ultrapassou os 5,30m e Porto Alegre não apenas ficou debaixo d’água, mas outras regiões do estado também foram inundadas — 452 municípios gaúchos foram severamente afetados.
O avanço das água, porém, poderia ter sido amenizado se medidas de contenção tivessem sido tomadas, e as obras necessárias realizadas, ao longo de aproximadamente oito décadas. Mesmo porque, houve sinais anteriores ao alagamento atual, de que o desastre poderia ser de imensas proporções.
“Na cheia de 1967, o nível atingido foi de 3,13m, apenas 13cm acima do cais, o suficiente para molhar os calçados das pessoas. Mas reavivou a memória de 1941 e houve um clamor por medidas. Assim, o governo federal, que à época tinha um órgão dedicado à infraestrutura hidráulica do país, o DNOS (Departamento de Obras de Saneamento), elaborou um projeto de contenção de enchentes abrangendo Porto Alegre, Canoas e São Leopoldo”, ressalta o professor de hidrologia da engenharia civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) André Luiz Lopes da Silveira.
“O projeto foi apresentado em 1968 e as obras terminaram em 1974. Nesse amplo projeto, Porto Alegre foi protegida por diques externos [contra cheias do Guaíba, a oeste, e do Gravataí, ao norte] e diques internos margeando os principais córregos. A cota de proteção foi fixada em 6m. A maioria desses diques, que somam 68km, é de terra e muitos são leitos de rodovias e vias que circundam Porto Alegre. Um trecho no Centro da cidade, de 2,7m, foi feito, por falta de espaço para um dique de terra, na forma de um muro de concreto armado no qual há várias comportas de contenção metálicas sobre trilhos, que permitiam o acesso ao cais do porto. Essa parte em concreto é conhecida como Muro da Mauá”, frisa o professor.
Mas, segundo André, houve descaso com a manutenção dessas estruturas. “Se não houvesse descaso com manutenção e com as reformas necessárias, hoje Porto Alegre estaria seca e com o aeroporto (Salgado Filho) funcionando. Falhou tudo. Comportas estavam sem vedação adequada, diques de terra tinham partes deterioradas e as estações de bombeamento pararam de funcionar pela inundação interna indevida”, aponta.
Para o professor, as medidas para evitar e conter enchentes futuras em Porto Alegre devem ter quatro focos: engenharia, ordenamento territorial, sistema contra cheias e previsão hidrológica e meteorológica de alagamentos e deslizamentos. Ele argumenta, ainda, que falta um órgão federal que pense o problema e auxilie nos projetos.
“Isso ajuda na prevenção e não deve ser colocado como atribuição da Defesa Civil, que atua na emergência. É preciso uma auditoria técnica frequente das infraestruturas, sobretudo daquelas contra enchentes”, salienta.
O especialista acrescenta que “métodos de projeto e construtivos têm que ser revistos para torná-los resistentes às chuvas extremas e alagamentos — o que inclui rodovias, pontes, estações de bombeamento, plantas de tratamento de água e esgotos, hospitais, pistas de pouso. Isso inclui, ainda, drenagem urbana, rede elétrica e de iluminação, comunicação e contenção de encostas. Também caberia à engenharia fazer um amplo diagnóstico para reforma e aperfeiçoamento dos sistemas de diques já existentes”, adverte.
Protocolos
André também cita a importância de um plano de ação emergencial, similar ao exigido para barragens e bacias com alto risco de inundação. As autoridades devem definir protocolos de resgate e pontos de encontro seguros para as pessoas em situação de risco.
“Depois de 1941, houve cheias importantes em 1946, 1954, 1956, 2001, 2011, 2015 e 2020. Em 2023, teve mais duas enchentes e agora está tendo a maior de todas. A grande diferença é que, nessas últimas décadas, a população cresceu e se expôs ao risco de inundações e deslizamentos. Nunca houve um ordenamento territorial em nenhum município que considerasse esses riscos para as moradias”, aponta.
Ao Correio, a prefeitura de Porto Alegre pontuou que somente agora o sistema de contenção de alagamentos da capital gaúcha foi submetido a um teste que permite ter um diagnóstico preciso. “O dilema não é a falta de manutenção, mas a concepção dos projetos de construção das casas de bomba e das comportas que vieram à tona na maior tragédia climática do Rio Grande do Sul”, observa a gestão municipal.
Deixe um comentário