A rotina de percorrer, diariamente, as ruas de Canos não mudou. Todos os dias, bem cedo, o agente municipal de trânsito Jaime Izaguirre, de 38 anos, veste o uniforme de serviço e parte para a ronda pelas ruas da cidade, uma das mais atingidas pelas enchentes que inundam boa parte da região metropolitana de Porto Alegre.
A viatura da fiscalização, porém, foi trocada por um barco com motor de popa. As multas por estacionamento irregular não são mais aplicadas. Os olhos de Jaime miram apenas telhados, lajes e varandas à procura de quem precisa de ajuda, seja gente, seja bicho.
Outros colegas da Diretoria de Trânsito municipal estão trabalhando na parte seca da cidade, organizando o fluxo viário para priorizar a circulação de militares, voluntários e veículos de serviço, como ambulâncias e caminhões que transportam comida, água, roupas e equipamentos. Nesse cenário, em que o caos e a esperança andam juntos, Jaime contou ao Correio um pouco de como tem sido seu dia a dia desde que precisou abandonar a casa em que mora com a mulher e a filha, de 9 anos, no bairro Harmonia.
Quando pode, Jaime dá uma passadinha por lá, de barco, para ver se o projeto de uma vida inteira ainda está de pé ou se o imóvel não foi invadido por saqueadores. A família abrigou-se na casa de uma coleguinha de escola da filha. Quando as águas do Guaíba invadiram o bairro, só deu tempo de pegar algumas roupas e documentos. Jaime ainda correu à casa do pai, Haroldo, no bairro vizinho de Cinco Colônias, para tirá-lo de lá.
O fiscal de trânsito conhece cada bairro, cada rua da cidade em que viveu a maior parte da vida, o que dá a ele um papel estratégico no esforço gigantesco de resgate nas áreas alagadas. Muitos pilotos de barco que atuam como voluntários não são de Canoas, precisam de gente como Jaime para se orientar pelo emaranhado de ruas e vielas tomadas pela água barrenta. Diariamente, a lancha parte com cestas básicas, roupas para quem resiste a deixar o local, e ração animal. Retorna com adultos, crianças, idosos, cães e gatos. As chuvas que voltaram a cair na Grande Porto Alegre e na Região Serrana assustam quem ainda tinha esperança de aguardar, em casa, a queda do nível do Guaíba, e estão provocando uma segunda onda de refugiados climáticos, moradores que desistiram de permanecer na cidade inundada sem água, luz, sinal de internet e com a pouca comida se estragando na umidade.
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Deixar a área é a recomendação da prefeitura que o agente de trânsito tenta levar aos moradores em suas missões. A cada um que localiza na parte mais alta das casas, Jaime alerta sobre os riscos de permanecer isolado e pede para que deixe o local e procure um abrigo público. Às vezes, o resgate não pode ser feito, seja pelo pequeno espaço do barco, seja por se tratar de animais de grande porte ou pela complexidade da operação. Foi o que aconteceu quando encontrou, em uma casa, mais de 30 cães molhados e famintos. A dona do imóvel cuidava de animais abandonados, mas teve de sair de casa sem eles.
“Nessa hora, a gente identifica o local e chama equipes especializadas, que conseguem fazer o resgate com técnica e segurança. E leva ração para os animais sobreviverem até serem retirados”, explica o agente de trânsito.
Nos últimos dias, o trabalho das equipes aumentou porque muitos moradores aproveitaram o ligeiro recuo das águas do Guaíba para voltar para os imóveis na esperança de salvar alguma coisa. A prefeitura de Canoas, porém, emitiu, ontem, um alerta para a possibilidade de o nível das águas voltar a subir nos próximos dias. “É importante ressaltar que o repique da cheia deverá ocorrer sob cenário de alta vulnerabilidade no município. A Defesa Civil orienta que as pessoas evitem áreas alagadas e que as famílias não retornem para as suas casas nos próximos dias”, disse o secretário-chefe do Escritório de Resiliência Climática (Eclima) do município, José Fortunati.
“É assustador”
Na sexta-feira passada, Jaime conseguiu entrar na casa dele pela primeira vez. As marcas da enchente indicavam que a água havia chegado à metade da parede. Roupas, móveis, eletrodomésticos, estava tudo encharcado, um prejuízo enorme. “Como me habituei a dizer, é viver um dia de cada vez. Recomeço, reconstrução? Nem quero pensar nisso, agora. O que precisamos é tirar as pessoas daqui, ainda há risco de a água voltar a subir. Mas é triste ver a casa da gente assim”, lamenta.
O agente da prefeitura conta que o maior temor dos moradores são os saques que estão ocorrendo nas áreas inundadas. Por isso, muitos resistem em sair. Por causa da ação de bandidos, ele só sai, de dia ou de noite, em operações de resgate quando há escolta policial. Assim que o sol se põe, a escuridão é total, não se vê nenhum ponto de luz. O risco de navegar nessas condições também aumenta muito. “Tiramos um morador que não aguentou mais ficar no escuro, com medo dos bandidos, ouvindo barulhos que não sabia de onde vinham. É muito assustador passar a noite no meio da enchente.”
Quando o dia termina, exausto, Jaime desembarca e corre para ver a família. Neste domingo, o aguardava um singelo jantar em homenagem às duas mães que, agora, dividem o mesmo teto — a que acolheu e a que foi acolhida. Quando ele conversou com o Correio, mostrou algumas imagens do estado em que ficou a casa queteve de abandonar. “Minha esposa nem quis ver as fotos, os vídeos, está muito abalada. Minha filha só perguntou: ‘E as minhas coisinhas, pai? Ainda estão lá?’. Eu segurei a respiração e respondi: ‘Estão, sim, filha, mas elas não são mais como eram antes’. Acho que ela entendeu.”
Para a família do fiscal de trânsito Jaime Izaguirre e para todas as milhares de famílias atingidas pela maior enchente da história do Rio Grande do Sul, nada será mais como era antes.
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