No segundo semestre de 2020, um quarto do Pantanal brasileiro queimou em uma série de incêndios sem precedentes.
Cenas de animais carbonizados espalharam-se pela internet enquanto o fogo se alastrava ao longo dos 4 milhões de hectares que foram consumidos no total, de acordo com o Instituto SOS Pantanal.
Agora, enquanto os gaúchos ainda somam os prejuízos após as enchentes que marcaram a história recente do estado, um novo evento climático está acontecendo no Centro-Oeste.
Mas essa tragédia já estava anunciada, diz Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão nas Nações Unidas.
Antes mesmo de o mês de junho chegar na metade, o Pantanal já havia batido dois recordes relacionados à emergência climática.
O primeiro foi a seca: segundo dados da Marinha do Brasil, os valores mensais medidos neste ano em Ladário (MS), onde fica a principal régua do rio Paraguai — o mais importante da hidrografia pantaneira — foram os menores da série histórica.
Por isso, em maio, a Agência Nacional de Águas (ANA) já havia declarado situação crítica de escassez hídrica na região.
Com a seca, veio o fogo. Os focos de incêndio registrados somente na primeira quinzena de junho, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram os mais numerosos para o mês, batendo o recorde de toda a série histórica, iniciada em 1998.
O Ministério do Meio Ambiente (MMA) afirmou à BBC News Brasil que “historicamente, o período de seca no Pantanal ocorre no segundo semestre, mas a mudança do clima e os efeitos do El Niño anteciparam e agravaram a estiagem”.
Mas para o climatologista Paulo Artaxo, essa antecipação já era prevista.
“A gente já sabia que isso ia acontecer quando vimos aquele evento no Rio Grande do Sul”, afirma o especialista.
Segundo Artaxo, uma consequência possível do fenômeno climático que provocou o excesso de chuvas no Sul era justamente uma antecipação da seca no Pantanal. “É como se as chuvas tivessem ficado presas no Rio Grande do Sul”, diz.
“O problema não é prever, mas agir para que não aconteça. E faltou ação.”
Foi só os incêndios baterem recorde para o mês de junho que o governo anunciou, na sexta-feira (14/6) a criação de uma “sala de situação para ações de prevenção e controle de incêndios e secas em todos os biomas, com foco inicial no Pantanal”.
A primeira reunião do grupo ocorreu na segunda-feira (17/6) sob coordenação da Casa Civil e com representantes de diversas pastas, dentre elas, a do Meio Ambiente, da Justiça, da Defesa e de representantes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
O governo federal manteve de 2018 a 2023 um plano anual de ação para manejo do fogo no Pantanal para reduzir os incêndios no bioma.
O plano foi coordenado pelo MMA, implementado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, a um custo de R$ 22,9 milhões.
O plano de 2023 foi lançado em abril do ano passado com o objetivo de impedir que os incêndios de 2020 se repetissem.
As ações foram planejadas com base em estudos de cenários climáticos e de análises sobre o acúmulo de material que poderiam intensificar o fogo para identificar as áreas sob maior risco de incêndio.
Também envolvia medidas de preparação e combate ao fogo.
Porém, o período de duração do programa se encerrou no ano passado.
A BBC News Brasil questionou o MMA se outro plano específico foi elaborado para evitar ou mitigar os efeitos dos incêndios no Pantanal, mas não houve resposta da pasta a respeito deste ponto específico.
Segundo o MMA, foram realizadas parcerias com os governos estaduais do Mato Grosso Sul, onde está situado 65% do Pantanal brasileiro, e do Mato Grosso, que abriga 35% do bioma.
“Com o agravamento da seca na região, intensificada pela mudança do clima e por um dos El Niños mais fortes da história, o governo federal ampliou as ações e a cooperação com os Estados”, disse a pasta.
Questionado se era possível prever tantos incêndios no mês de junho, o governo do Mato Grosso disse em nota à BBC News Brasil que a região passa por “um período atípico desde o final de 2023, com pouca incidência de chuvas e baixa umidade”.
“Com isso, o material orgânico seco, como a turfa, se acumula, o que tem facilitado a combustão.”
O governo do Mato Grosso do Sul disse em nota que ao longo dos anos tem atuado “na prevenção e proteção do bioma ao longo dos últimos anos.”
Segundo o governo, desde abril deste ano um centro integrado com diversas secretarias estaduais atuam no combate aos incêndios no Pantanal. “Já foram empregados um efetivo de 254 bombeiros e bombeiras militares nas ações de prevenção, preparação e combate aos incêndios florestais”, afirmou trecho da nota.
‘Fogo não cai do céu’
O pacto firmado entre o governo federal e os Estados prevê, dentre outras medidas, a suspensão de autorização de queimas até o fim do período seco.
As queimas controladas são permitidas, contanto que autorizadas previamente pelos órgãos estaduais competentes, ou pelo ICMBio, que é vinculado ao MMA, no caso de propriedades dentro de áreas de conservação.
Também é preciso obedecer algumas regras, como manter uma equipe treinada acompanhando e não realizar as queimas em florestas e demais áreas de vegetação.
O Pantanal foi o bioma que mais queimou proporcionalmente, tendo 59% do seu território em chamas entre 1985 e 2023.
Corumbá, no Mato Grosso do Sul, foi o município brasileiro mais afetado no período, de acordo com um levantamento realizado pelo instituto MapBiomas.
Assim como no resto do país, a abertura de pastagens é a principal razão do ateamento de fogo.
“Fogo não cai do céu”, diz Rodrigo Agostinho, presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), à BBC News Brasil.
“No ano passado, tivemos dois incêndios provocados por raios. O resto foi tudo alguém que colocou fogo.”
De acordo com Agostinho, todos os focos de incêndio registrados neste ano são criminosos.
O presidente da Associação de Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrisul), Guilherme Bumlai, rechaçou a possibilidade de que os incêndios que atingem o Pantanal possam ter sido resultado da ação criminosa de produtores rurais. A Acrisul é a principal representante dos pecuaristas do Estado.
“De forma nenhuma esses incêndios podem ser imputados aos produtores rurais porque eles são os maiores interessados em proteger suas fazendas. Estamos num período muito seco e há muito capim seco nas propriedades. Isso é um barril de pólvora”, afirma Bumlai.
Sem apresentar evidências, Bumlai atribuiu os incêndios no Pantanal sul-matogrossense a acidentes causados pela suposta ação descuidada de pescadores e motoristas.
“Muitas vezes, o pescador faz uma fogueira na beira do rio e não apaga direito […] também temos aquelas pessoas que não têm noção (do perigo) e jogam uma bituca de cigarro pela janela e o fogo sai de controle”, afirmou.
Combate aos incêndios
O primeiro semestre deste ano já registra um aumento de mais de 1.000% nos focos de incêndio em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com a plataforma BDQueimadas, do Inpe.
Diante dos números, o MMA informou que o Ibama contratou 2 mil brigadistas para atuar em todo o país, com foco inicial no Pantanal e na Amazônia.
Por sua vez, o governo do Mato Grosso lançou na segunda-feira a Operação Pantanal, que combate incêndios na região, para impedir que o fogo destrua o bioma como em anos anteriores.
A operação foi adiantada em dois meses pelas atuais condições climáticas locais, junto com o início da proibição do uso de fogo para manejo de áreas de cultivo.
“Somente serão autorizados focos preventivos, ou seja, o uso do fogo para prevenir eventos maiores”, disse a secretária de Meio Ambiente, Mauren Lazzaretti, ao anunciar as medidas.
O governo do Mato Grosso também informou que R$ 74,5 milhões foram investidos na execução de um plano de combate ao desmatamento ilegal e incêndios florestais.
O governo do Mato Grosso do Sul afirma já ter empregado R$ 50 milhões em equipamentos e ações de prevenção e combate aos incêndios e instalou 13 bases avançadas em pontos remotos da região a fim de agilizar a ação contra focos.
“Discutimos desde fevereiro com bastante intensidade essa situação no governo”, disse o secretário-executivo de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul, Artur Falcete, em reunião na terça-feira (18/6) com o governo federal para tratar da crise.
“Tanto que o decreto de emergência saiu bastante cedo, no início de abril, pois já sabíamos das condições climáticas muito próximas das de 2020. Alocamos recursos adicionais para esse combate.”
Em abril, os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul assinaram um Acordo de Cooperação Técnica no qual se comprometeram a fazer ações conjuntas para a preservação do Pantanal. Entre as medidas previstas estão uma legislação semelhante sobre o uso dos recursos naturais do bioma, elaboração de um plano para prevenção e resposta aos incêndios florestais no bioma, além de monitoramento da fauna silvestre.
Mudança do clima
Agostinho lembra que o primeiro semestre é uma época que, historicamente, não há tantos incêndios.
“Nessa época no ano passado, o Pantanal estava debaixo d’água”, diz.
De fato, segundo explica Artaxo, o Pantanal nunca foi um ecossistema sensível à seca. “Mas, há três anos, isso tem mudado”, afirma.
Apesar das mudanças estarem em curso, o cenário de hoje é diferente do que havia em 2020.
Naquele ano, de acordo com o presidente do Ibama, havia muita matéria orgânica acumulada, que serviu de combustível para que o fogo se alastrasse.
“Havia um estoque de mais de uma década de matéria orgânica ali”, diz ele.
Apesar dessa diferença, as previsões agora são pouco otimistas.
“Estamos vivenciando e vamos vivenciar a maior seca do Pantanal já conhecida, sem sombra de dúvidas”, diz Agostinho.
“Mas vamos trabalhar para que os efeitos do incêndio sejam menores”.
As mudanças do clima, que refletem no calendário e intensidade das chuvas e secas não só no Brasil, mas em todo o mundo, são cada vez mais uma realidade, segundo afirma Artaxo.
E os governos precisam se planejar para isso, defende o especialista.
“O Brasil não pode enfrentar o próximo evento climático extremo com o mesmo amadorismo que enfrentou no Rio Grande do Sul.”
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