O Tribunal de Justiça do estado de São Paulo (TJ-SP) extinguiu as penas dos 74 policiais militares envolvidos no massacre do Carandiru, no qual 111 detentos foram mortos pela tropa de choque, que invadiu o presídio para debelar uma rebelião (leia no quadro ao lado). A extinção das punições foi tomada em função de ter sido considerado constitucional o indulto concedido pelo então presidente Jair Bolsonaro, em dezembro de 2022. Isso livrou os agentes relacionados aos assassinatos de penas que variam de 48 a 624 anos de prisão em regime fechado.
O indulto se soma a um processo marcado pela impunidade, uma vez que nenhum dos policiais militares condenados pelo massacre passou um dia sequer na cadeia. Em novembro de 2022, quando o TJ-SP dera início à análise das penas para os 69 agentes ainda vivos, Bolsonaro baixou o indulto — o que fez com que as condenações fossem suspensas.
A justificativa que favoreceu os policiais é de que o crime havia sido cometido há mais de 30 anos e que “não era considerado hediondo no momento de sua prática”. A Procuradoria-Geral da República (PGR), então sob a gestão de Augusto Aras, moveu uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o perdão presidencial da pena. Um mês depois de decretado o indulto, a hoje ministra aposentada Rosa Weber, do STF, suspendeu liminarmente um trecho que beneficiava os condenados pelo massacre.
Em abril de 2023, o Órgão Especial do TJ-SP analisou as acusações de inconstitucionalidade do indulto, mas decidiu esperar uma decisão definitiva pelo Supremo. Depois de mais de um ano parado, o ministro Luiz Fux, atual relator do caso, determinou que o Tribunal de Justiça prosseguisse com a análise sobre a inconstitucionalidade, sem esperar pelo julgamento do tema pelo plenário do Supremo. O TJ-SP decidiu pela constitucionalidade do indulto na quarta-feira.
Alamiro Velludo, advogado e professor de Direito Penal da Universiade de São Paulo (USP), explica que o presidente da República tem plena liberdade para a concessão de indultos, exceto para os crimes que são expressamente vedados pela Constituição. A Carta veda o perdão da pena para tráfico de drogas, terrorismo, tortura e outros crimes considerados hediondos.
“A Lei dos Crimes Hediondos, que é de 1990, na primeira versão não inclui o homicídio como esse tipo de crime. O homicídio só será incluído em 1994, ou seja, quatro anos depois da promulgação da lei,” explica.
Quando ocorreu o massacre, em 1992, os homicídio não foram considerados crimes hediondos. Isso significa que os assassinatos cometidos na invasão do Carandiru não se enquadravam nas categorias de delitos cujo indulto é proibido pela Constituição.
Velludo destaca que, embora o homicídio tenha sido posteriormente classificado como hediondo, “esses delitos, ainda que tenham sido objeto de indulto, após a mudança da lei não podem ser incluídos no rol dos delitos que são vetados — criaria, segundo ele, “uma legislação penal que retroagiria em desfavor do acusado”. Esse foi o mesmo entendimento do TJ-SP.
Como o indulto é uma discricionariedade do presidente da República, Velludo frisa que o Judiciário “não pode entrar no mérito se é correto ou não”. No caso do massacre, Bolsonaro “agiu dentro de suas atribuições”.
O Ministério Público do estado (MP-SP) contestou a constitucionalidade do indulto. De acordo com o promotor Maurício Antonio Ribeiro Lopes, o perdão da pena não abrange crimes “praticados mediante grave ameaça ou violência contra a pessoa ou com violência doméstica e familiar contra a mulher”.
O caso poderá ser retomado no STF, mas, para o advogado especialista em direito penal e constitucional Ilmar Muniz, a decisão dificilmente será reformada. “Acredito que tem uma probabilidade muito grande de o STF considerar constitucional, sim. O presidente tinha essa liberdade”, pontuou.
Cronologia do banho de sangue
» Em 2 de outubro de 1992, um jogo de futebol entre detentos do Pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, é motivo de briga entre grupos rivais. Foi o rastilho que levou à rebelião que terminou na chacina de 111 presos (no alto à esquerda). » A confusão começou por volta das 14h e se generalizou. Os guardas penitenciários não conseguiram conter a revolta. Acionaram o alarme e chamaram a tropa de choque da Polícia Militar (PM). À frente da operação, estava o coronel Ubiratan Guimarães.
» Ele ouviu o relato de funcionários da penitenciária sobre a situação: o Pavilhão 9 — que abrigava 2.070 dos 7.257 detentos da Casa de Detenção — tinha “caído”, gíria das penitenciárias para as rebeliões. O prédio tinha 428 celas — as individuais abrigavam até três presos, mas nas coletivas moravam cerca de 40 detentos. A construção era destinada aos presos que ainda aguardavam julgamento, e a maioria tinha entre 18 e 25 anos.
» O diretor da penitenciária, José Ismael Pedrosa, tentou negociar com os rebelados. Fracassou. Percebendo que a situação tendia a se agravar ainda mais, relatou o que tentara ao coronel Ubiratan, que chamou policiais das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), do Choque, do Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) e do Comando de Operações Especiais (COE). Era por volta das 15h30.
» A invasão em torno das 16h30. A tropa era composta por 330 PMs, 25 cavalos e 13 cães. No primeiro piso do Pavilhão 9, não houve mortos. No segundo, 15 presos foram assassinados. Nos outros três andares, morreram 96 — quase todos a tiros.
» Por volta das 17h15, a rebelião tinha acabado. Presos que testemunharam o massacre afirmaram que houve uma espécie de “competição” entre os policiais para ver quem matava mais. Além disso, os cães da tropa foram utilizados para mutilar os corpos. Os PMs afirmaram que foram atacados com facas e estiletes e, por isso, reagiram.
» Pelas 17h30, os sobreviventes foram obrigados a ficar nus pelos policiais e, depois de serem agredidos, recolheram os cadáveres dos detentos que se espalhavam pelo chão repleto de sangue (no alto à direita). Os corpos eram jogados nos carros da polícia. Segundo relatos de encarcerados que fizeram o serviço, havia vivos entre eles.
» Ubiratan foi julgado e condenado, em 2001, a 632 anos de prisão. Mas, em 2006, o júri foi anulado pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). O coronel, já na reserva, tornou-se deputado estadual pelo PTB e passou a ter prerrogativa de foro (acima à esquerda). Terminou inocentado. Ubiratan foi morto a tiros pela namorada dele à época, Carla Cepollina. Acusada de matá-lo por ciúmes, foi julgada e inocentada.
» Os policiais envolvidos no massacre foram denunciados e condenados em um processo repleto de idas e vindas, com anulações e confirmações de sentença. Ninguém foi colocado em regime fechado de prisão.
» Os pavilhões 6, 8 e 9 do Carandiru foram implodidos em 8 de dezembro de 2002, no governo do hoje vicepresidente Geraldo Alckmin (acima à direita). No local, há um parque e um memorial aos mortos do massacre, que tornou-se livro do médico Dráusio Varela — e deu origem ao filme dirigido por Hector Babenco, lançado em 2003.
*Estagiários sob a supervisão de Fabio Grecchi
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