Aos 69 anos, Bill Gates publica o primeiro livro da trilogia com que pretende relatar sua vida. É uma vida e tanto: desde que a Forbes passou a listar as pessoas mais ricas do mundo, em 1987, ninguém encabeçou mais vezes o ranking do que Gates, líder em 16 anos. Agora aparece em 15o lugar, já tendo doado parte significativa da fortuna.
“Código-Fonte – Como Tudo Começou” concentra-se no período até a formação da Microsoft. Dá pistas sobre como contexto social, ambiente familiar, talento e esforço podem se combinar para impulsionar pessoas.
Gates enfatiza as vantagens que ganhou ao nascer. “É impossível exagerar o privilégio imerecido de que desfrutei: ter nascido num país próspero como os EUA é parte importante de um bilhete de loteria premiado, assim como ter nascido branco e homem numa sociedade que privilegia os homens brancos.”
O otimismo pós-Segunda Guerra Mundial contaminou sua infância, numa família em que a mãe descendia de um banqueiro e o pai, de homem pobre que mal sabia ler –o bisavô é o Bill Gates original da linhagem, e o bilionário foi batizado William Gates 3o, vindo daí seu apelido de infância, Trey, variante de Three.
Fica clara a forte influência de Gami, a avó materna. Observando-a jogar baralho, diz ter aprendido como treinar a mente.
Tal treino passa por uma ciência fundamental, cujo domínio também é ressaltado na biografia de Walter Isaacson sobre o atual número um da Forbes, Elon Musk. Gates, ele recorre ao matemático americano Jordan Ellenberg para explicar: “Saber matemática é como usar óculos de raios-X que revelam as estruturas ocultas sob a superfície confusa e caótica do mundo”.
Essa disposição intelectual encontrou aberta a porta da sala de computadores da escola Lakeside. Lá desenvolveu suas habilidades como programador –atividade então pouco difundida- e conheceu Paul Allen, seu futuro sócio.
Gates reserva boa parte do livro para Allen. Foi ele quem lhe falou pela primeira vez de uma empresa chamada Intel, e também sobre a lei de Moore, que previa o crescimento acelerado da capacidade de processamento dos chips. Foi ele, também, quem bolou o nome Micro-soft, que depois dispensaria o hífen.
Desenvolveram uma relação de amor e rivalidade. Allen considerava o amigo “muito sugestionável” e tinha um entendimento mais colaborativo sobre o trabalho, enquanto Gates era mais individualista. “Onde eu via Einstein como modelo, ele via o Projeto Manhattan”, diz o autor, que reconhece que foi a visão do amigo que prevaleceu.
Enxergaram a vantagem competitiva que poderiam ter no nascente mercado de software. Programando na linguagem Basic, Gates tentava escrever códigos enxutos, que coubessem na exígua memória dos computadores de então.
O livro dá o relato de Gates sobre quando ele se tornou sócio majoritário da Microsoft. No primeiro movimento, escreveu um bilhete para Allen dizendo que, pela dedicação de cada um, parecia-lhe mais justa uma divisão 60%/40%, e Paul assentiu. Mais adiante, propôs avançar, para 64%/36%, aí não sem resistência do sócio, que acabou cedendo. “Hoje em dia fico mal por ter insistido, mas, na época, eu achava que a divisão refletia com mais precisão o comprometimento que a Microsoft precisava de cada um de nós.”
A relação entrou em mau caminho. Gates tentaria comprar as ações de Allen, mas ele recusou, decisão que lhe deixou também muito rico quando a Microsoft abriu o capital, em 1986 (encerrado o IPO, Gates ainda tinha 45% da empresa). Os dois reconstruiriam a amizade mais adiante; Allen teve câncer e morreu em 2018.
É muito interessante também o relato sobre o primeiro contato com Steve Jobs, fundador da Apple, nos anos 70. Notou uma “certa aura” ao vê-lo num evento; “pensei com meus botões: quem é esse cara?”. Começava outra relação de amizade e rivalidade.
Dá-se aí uma conexão curiosa entre as biografias de Gates e de Jobs. Em livro também escrito por Isaacson, Jobs diz que Gates seria uma pessoa de mais visão se tivesse tomado ácido alguma vez. Já Gates conta que provou sim a droga, oferecida por Allen, que também levava uísque para a sala de computadores e demonstrava como operar um baseado.
É um raro momento de desvio de foco de um jovem que dizia ter hiperfoco, a ponto de criar um conceito próprio de calendário, os “meses Gates”, definidos como “trabalho duro, em tempo integral, sem distrações”.
O livro traça seu primeiro contato com a política ao servir como mensageiro na Câmara dos Representantes. “É quase impossível passar um tempo no Congresso, mesmo nesse patamar tão básico, e não se deixar seduzir pela coisa toda.” Neste ano, Gates, doador da campanha de Kamala Harris, contou que teve jantar recente com Donald Trump.
Também aparecem na biografia o interesse pelas montanhas e pelo teatro. Já as garotas “eram de um planeta completamente desconhecido”. Sua empolgação fica mais nítida ao acelerar carros.
Em casa, os gastos jamais questionados eram aqueles com livros, sendo a contrapartida uma pressão intensa para que ele estudasse na Universidade Harvard (o que ocorreu, mas acabaria abandonando o curso para se dedicar à Microsoft).
Gates descreve os pais como “irredutíveis acerca do trabalho voluntário e da retribuição à sociedade”, abrindo a trilha que o tornaria um dos seres humanos que mais doaram dinheiro em todos os tempos, sobretudo por meio da fundação que levava seu nome e o de sua ex-mulher, Melinda. Após a separação, a fundação passou a se chamar apenas Gates, e Melinda não é citada neste primeiro livro nem mesmo na seção de agradecimentos.
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