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As críticas em torno da contratação de megaconsultoria para reconstrução de Porto Alegre

Gigante de consultoria em gestão e negócios com atuação em quatro continentes, a Alvarez & Marsal (A&M) é a primeira empresa de porte global na área de capital de investimentos a incorporar-se à reconstrução de Porto Alegre após a enchente.

A prefeitura, responsável pela contratação da A&M, enfatiza a experiência da empresa na resposta aos efeitos do furacão Katrina, em 2005, nos Estados Unidos. Foi justamente esse episódio, porém, que suscitou mais críticas à companhia, associando-a a políticas de desregulação e privatização de serviços públicos. Esse receituário foi batizado pela escritora canadense de esquerda Naomi Klein de “capitalismo de desastre”.

No Brasil, onde está presente desde 2004, a empresa é alvo de considerações semelhantes, mesmo antes de apresentar qualquer proposta como ocorre em Porto Alegre. A A&M diz que seu objetivo é fazer um diagnóstico da situação da infraestrutura local e propor formas de financiar a reconstrução. A companhia garante que segue rigorosamente termos de contratos com clientes e práticas de mercado.

Mais de 30 técnicos da A&M trabalham desde segunda-feira (13/5) na elaboração de um plano de recuperação da infraestrutura da cidade. O estudo deve ser concluído em 30 dias. No total, a consultoria durará 60 dias, em regime pro bono (sem ônus para o tomador, no caso, o município).

A empresa também assinou contrato de prestação de serviços de consultoria ao governo do Rio Grande do Sul, na mesma modalidade sem ônus, segundo a assessoria do governador Eduardo Leite. A administração estadual anunciou que fará acertos do mesmo tipo com outras consultorias, como McKinsey e EY.

Em Porto Alegre, o trabalho resultará no que a A&M chama de “plano macro preliminar” para recuperação da capital. A assessoria da empresa definiu nos seguintes termos o escopo do trabalho: “Calcular o impacto (da enchente) na infraestrutura da cidade para sugerir alternativas de fontes de recursos para reconstrução”.

Questionada pela BBC News Brasil a respeito de detalhes de seu estudo, a A&M disse que, no momento, concentra seus esforços no diagnóstico e no plano emergencial de ações e, tão logo tenha a estrutura do plano, apresentará um cronograma para implementação à prefeitura.

A prefeitura poderá acolher ou rejeitar o projeto, mas já definiu que não contratará a empresa após a conclusão do estudo, segundo o vice-prefeito Ricardo Gomes (sem partido).

Na sexta-feira (17/5), quando o contrato entre prefeitura e A&M foi assinado, a equipe da firma já havia se reunido com o prefeito, o vice e representantes das secretarias de Obras e Infraestrutura e Habitação e Regularização Fundiária e do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). Encontros com as secretarias de Saúde e Educação estavam previstos. Todas as secretarias que sofreram impacto da catástrofe farão reuniões com os consultores.

O projeto incluirá áreas como saneamento, construção civil e outros segmentos da infraestrutura local afetados pelas águas. A empresa não designou porta-voz em Porto Alegre. Segundo a assessoria, a consultoria está em fase de levantamento de informações.

Identidade, área de especialização e origem dos técnicos são preservadas. Sabe-se apenas que se trata de um time multidisciplinar e de várias nacionalidades, segundo a assessoria da A&M.

Ao dar início a um novo projeto, a empresa costuma buscar em seu quadro de pessoal espalhado por mais de 80 países aqueles com perfil e qualificação mais adequados para cada tarefa específica. Neste momento, por exemplo, uma equipe brasileira da área de mineração trabalha em um projeto na Austrália.

Ao anunciar a contratação, na segunda-feira (13/5), o prefeito Sebastião Melo (MDB) disse que o serviço havia sido oferecido ao município por um dos sócios da A&M, “gaúcho e porto-alegrense”. Ao jornal Folha de S.Paulo, afirmou na quarta-feira (15/5) ter sido procurado por um “cidadão deles que mora aqui”. A assessoria da empresa disse que não divulgará o nome do executivo.

A execução do trabalho em Porto Alegre ficará a cargo do braço da A&M para capitais de infraestrutura. Essa unidade de negócios, fundada há cinco anos no Brasil, passou a ser chamada no ano passado de A&M Infra. Hoje, é considerada a maior empresa de projetos de capital e de infraestrutura no país. Com sede no Brasil, é responsável por mais de 300 projetos supervisionados por 500 profissionais na Europa, na Ásia, na América do Norte e na Oceania.

Fundada em 1983, nos Estados Unidos, pelos executivos Tony Alvarez e Bryan Marsal, a A&M ganhou reputação como consultoria especializada em prestar assistência a grandes conglomerados em dificuldades contábeis e financeiras. A área é conhecida como turnaround management (em tradução livre, “administração da volta por cima”).

No Brasil, a A&M adquiriu notoriedade ao contratar o ex-ministro da Justiça Sergio Moro em 2020. Moro foi alvo de investigação do Tribunal de Contas da União (TCU) por suposto conflito de interesse em razão do episódio, uma vez que a empresa havia prestado consultoria para corporações investigadas no âmbito da Operação Lava-Jato. Ex-titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, Moro julgou processos da operação de 2014 a 2018. O ex-ministro e a A&M sustentam que ele não atuou em casos ligados à operação. O processo segue em tramitação no TCU.

Mercado Público alagado em Porto Alegre

Adriano Machado/Reuters
O Mercado Público de Porto Alegre foi tomado pela água durante as enchentes

O prestígio da A&M em um setor competitivo como o de turnaround ficou evidente na crise bancária de 2007. Quando a direção do banco nova-iorquino Lehman Brothers decidiu decretar falência, no dia 14 de setembro daquele ano, a primeira pessoa que o advogado Harvey Miller, responsável pela operação, chamou foi Bryan Marsal. No dia seguinte, a bancarrota foi decretada, sob a supervisão da A&M. A quebra do Lehman Brothers contribuiu para deflagrar a crise financeira global de 2008.

Em 2005, executivos da empresa supervisionavam a reforma da educação pública em Nova Orleans quando a cidade foi atingida pelo furacão Katrina. Em meio aos destroços, técnicos da A&M arriscaram suas vidas para salvar computadores e planilhas em áreas devastadas pelo desastre.

A atuação da empresa no episódio, porém, não é imune a críticas. O professor da Universidade de Illinois Kenneth Saltman, autor do livro Capitalizing on disaster: taking and breaking public schools (Routledge, 2007) – em tradução livre, Capitalizando o desastre: tomando e quebrando escolas públicas –, afirma na obra que a A&M aproveitou a conjuntura pós-Katrina para promover uma agenda de privatização e elitização das escolas públicas locais.

Saltman afirmou, por e-mail, à BBC News Brasil: “Em razão da folha corrida da A&M em possibilitar a privatização e a destruição das escolas públicas de Nova Orleans e do seu envolvimento na demissão em massa de professores e no desmantelamento ilegal de seu sindicato, qualquer um que se preocupe com a educação pública deveria ficar alarmado e cético sobre qualquer consultoria que eles derem em educação em qualquer lugar”. À BBC News Brasil, a A&M afirmou, por meio de sua assessoria, não ter o que comentar sobre a opinião de Saltman.

Enchente em Nova Orleans após passagem do furacão Katrina em 2005

Getty Images
Passagem do furacão Katrina, nos EUA, deixou quase 1,4 mil mortos e mais de 1 milhão de desalojados em 2005

No Brasil, a A&M prestou consultoria às Lojas Americanas e também à Vale depois do rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais.

No Rio Grande do Sul, em 2020, a A&M foi uma das contratadas sem licitação pela Companhia Rio-grandense de Saneamento (Corsan) para realizar avaliação econômico-financeira da estatal, então em vias de privatização.

Em seguida, prestou consultoria ao consórcio Aegea, que arremataria a Corsan como único participante do leilão de venda por R$ 4,1 bilhões.

Em ação popular contra a privatização, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua) sustentou, entre outros pontos, que a legislação estadual e federal exige licitação para contratação de empresas com a finalidade de efetuar avaliação econômico-financeira de estatais em vias de privatização. Depois de uma disputa política e jurídica que se estendeu por três anos, a privatização da Corsan foi finalizada em 2023, com a transferência da empresa para o consórcio Aegea.

O anúncio do contrato entre a prefeitura e a A&M provocou críticas. Um grupo de professores da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de outras instituições propôs em manifesto, entre outras medidas, que o governo do Estado crie uma fundação de estudos estratégicos responsável “pela geração de estatísticas e por análises essenciais para a boa condução das políticas públicas”.

O vice-diretor da faculdade, André Moreira Cunha, um dos organizadores do texto, disse ao jornal Zero Hora: “A Alvarez & Marsal é uma empresa com muito prestígio, não questiono isso. A dúvida é se o tipo de experiência que tem é necessário e suficiente”.

“O Rio Grande do Sul tem muita inteligência para ser usada. Já existe um fluxo de saída do Estado e do país. Se não trabalharmos de forma muito séria, esse processo pode se aprofundar”, explicou o professor.

O deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) afirmou: “Privatizar a reconstrução da capital gaúcha é um erro, mas se agrava nesse caso devido ao histórico dessa empresa (A&M)”.

Em nota, o Sindiágua disse que o acerto tem como objetivo oculto a transferência de patrimônio público à iniciativa privada: “É fundamental destacar que a empresa contratada não está aqui para reconstruir a cidade, como pode parecer à primeira vista. Pelo contrário, seus esforços parecem direcionados para preparar o terreno para a privatização do Dmae”. A entidade acusa o prefeito de “estar aproveitando a distração da população para avançar com uma agenda que pode ter consequências desastrosas para o futuro de nossa comunidade”.

O presidente do Sindiágua, Arilson Wünsch, comentou ainda o risco de contratações pro bono serem utilizadas para acessar dados privilegiados da administração pública que, posteriormente, poderão ser vendidos a empresas privadas interessadas em fazer negócios com o poder público. “Depois que você está lá dentro, que você contrata uma empresa, que está lá dentro uma empresa privada trabalhando com qualquer empresa pública, ela começa a ter os dados, começa a ter os números da empresa”, afirmou.

A respeito da manifestação do Sindiágua, disse que “tem uma unidade de negócios especialista em infraestrutura, formada por uma equipe sólida e de ampla expertise, qualificada para atuar em projetos de capital do setor”. Acrescentou que “segue, rigorosamente, cláusulas contratuais e de compliance com seus clientes, bem como as normas de mercado, com transparência e ética”.

O vice-prefeito Ricardo Gomes disse que o objetivo do acerto com a A&M é “compilar informações (sobre danos provocados pela enchente) e estruturar uma estratégia de buscar uma (reconstrução), seja pública ou privada, evitar que se percam oportunidades de financiamento e que duas fontes orçamentárias sejam destinadas para o mesmo objeto”.

Ele argumenta que certos hospitais e a maioria das escolas infantis de Porto Alegre já são operadas por empresas conveniadas e contratadas e que isso não configura enfraquecimento de fiscalização do poder público. “O foco é a prestação de serviço público, e esse serviço já é prestado em parceria com o setor privado há décadas”, sustenta.

Gomes adverte que, de qualquer maneira, a definição da forma de prestação do serviço cabe ao município e não à empresa de consultoria. “O máximo que pode acontecer é a consultoria sugerir, em um caso ou outro, as vantagens ou desvantagens de um ou outro modelo”, explica.

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