Em 2020, a advogada Evie Barreto Santiago ficou frustrada ao saber da escassez de políticas antirracistas na escola em que o filho dela estuda na Zona Oeste de São Paulo, o colégio Equipe.
Na época, a diretora da escola, que tem 550 alunos e mensalidade em torno de R$ 3,5 mil, disse em uma entrevista que o colégio tinha poucos professores negros.
A diretora também afirmou que não sabia quantos alunos negros havia no local.
Por acompanhar os eventos escolares, Evie sabia que eram poucos.
Aquela entrevista acendeu um alerta na advogada, que havia colocado o filho no Equipe por conta do perfil progressista da escola, criada no fim dos anos 1960 por ex-professores da área de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).
Aquilo fez ela se lembrar de sua própria infância e querer fazer algo a respeito.
A advogada conta que havia poucos estudantes negros na escola de elite em que ela estudava em Salvador, na Bahia.
Em meio a colegas de pele clara, ela costumava notar olhares de espanto ou sentia que recebia um tratamento diferente.
“Não é confortável ser uma criança negra em uma escola branca”, diz Evie à BBC News Brasil.
“As minhas experiências não eram nomeadas, nem existia o conceito de bullying.”
Ela diz que hoje reconhece essas situações do passado como recorrentes episódios de racismo.
Evie relembra que alguns pais de colegas de turma a tratavam com descaso e, entre os colegas, havia frequentes comentários sobre seu cabelo crespo.
“Quando a gente ia para casa de amigas, havia um desconforto entre os empregados, que às vezes não queriam me servir”, diz.
“Às vezes, percebia que determinada mãe de aluno me tratava mal. Ninguém falava: estamos te tratando assim por você ser negra, mas havia uma distinção.”
Hoje, com 51 anos e mãe de um adolescente de 15, Evie defende que as escolas adotem medidas mais firmes no combate ao racismo.
No Equipe, a advogada mobilizou outros pais e criou uma comissão antirracista.
Apesar de considerar grupos assim fundamentais para as escolas, a advogada frisa que as medidas de combate ao racismo precisam evoluir e que os debates devem ser constantes.
Evie aponta que faltam protocolos para definir de modo claro como conduzir casos de racismo, até mesmo nas escolas que já têm algum tipo de política sobre o tema.
Caso da filha de Samara Felippo
Para a advogada, um exemplo evidente de que as escolas deveriam ter um protocolo para lidar com casos de racismo foi o que ocorreu na semana passada no colégio Vera Cruz, uma das escolas mais tradicionais e caras da capital paulista.
O Vera Cruz foi um dos primeiros a criar uma comissão antirracista entre as escolas de elite de São Paulo.
Mãe de uma aluna, a atriz Samara Felippo denunciou um ataque racista sofrido pela filha de 14 anos no Vera Cruz.
Segundo a atriz, a adolescente teve o caderno roubado por alunas, que arrancaram as páginas de uma pesquisa e escreveram agressões racistas.
Samara disse que a filha já era excluída da turma, que atos hostis contra a garota tinham aumentado e que não era um caso isolado.
A atriz contou em suas redes sociais que registrou boletim de ocorrência e não decidiu se a filha continuará na escola. “Ainda estou digerindo tudo e talvez nunca consiga”, declarou.
Em nota, o colégio Vera Cruz informou que logo “reconheceu a gravidade deste ato violento de racismo, nomeando-o como tal, e imediatamente foram realizadas ações de acolhimento ao aluno agredido e sua família.”
A escola disse que duas alunas se apresentaram como as responsáveis pela agressão contra a filha da atriz.
O Vera Cruz disse ter feito um encontro entre as três alunas envolvidas no caso e, posteriormente, as responsáveis pelas agressões foram suspensas por tempo indeterminado. “Novas sanções poderão ser adotadas, conforme apuração e reflexão sobre os fatos”, informou.
Para Evie, o episódio mostra que faltam regras claras sobre o combate ao racismo, que possam definir, por exemplo, se são casos de expulsão ou suspensão.
A advogada considera que definir as medidas aplicáveis nesses casos é uma tentativa de impedir que atos racistas continuem ocorrendo deliberadamente no ambiente escolar.
“As vítimas precisam ser acolhidas e é preciso haver uma orientação sobre suspensão ou expulsão dos agressores. É preciso um protocolo prévio para orientar e dar segurança, para ninguém achar que é imune ou está sendo prejudicado.”
‘Não adianta ser progressista e não ser antirracista’
O caso George Floyd, um americano negro que morreu após um policial ajoelhar em seu pescoço, e discussões de combate ao racismo no Brasil levaram escolas particulares a criarem medidas exclusivas para enfrentamento ao racismo por volta de 2020.
Em meio ao debate mundial sobre o tema, diversos segmentos passaram a ser cobrados sobre as medidas adotadas para combater o racismo.
“O que me motivou a convocar outros pais para criar a comissão foi a indignação de ver que o Equipe, embora progressista, estava muito pouco avançado na educação antirracista. Achei contraditório”, comenta a advogada.
Com o apoio de um grupo de cerca de cem pais, a imensa maioria branca, ela criou a comissão em 2020.
“Pouquíssimos pais são negros, porque é um colégio majoritariamente branco.”
O grupo fez um manifesto em que pediu um aumento do número de professores e alunos negros, além da revisão do currículo escolar para incluir uma educação com história afro-brasileira e a criação de uma agenda antirracista por meio de palestras e debates.
Ela diz que a princípio houve resistência da escola. “O colégio teve dificuldades para entender o racismo estrutural na escola, porque entendia que era um lugar progressista e pronto. Mas não adianta ser progressista e não ser antirracista”, diz Evie.
O racismo estrutural é um termo usado para se referir ao alcance da discriminação racial em várias esferas, por meio de práticas conscientes ou inconscientes, que acaba estruturando a sociedade — como no acesso à educação, à saúde, a cargos de poder, entre outros. No Brasil, e em inúmeros países, essa estrutura desigual costuma favorecer os brancos.
Um dos pontos que preocupava a advogada no Equipe era a “pouca atenção a um currículo afrocentrado.”
A ausência de história afro-brasileira era uma das principais preocupações da advogada.
“Isso me preocupou porque esperava que a escola do meu filho fosse estruturada para cumprir a Lei 10.639, que obriga as escolas a redirecionarem o currículo para uma educação antirracista”, afirma.
Essa Lei, criada em 2003, determina a inclusão da história e da cultura afro-brasileira nos currículos de todas as escolas públicas e privadas do Brasil.
No entanto, são comuns relatos de unidades que não seguem à risca esse tipo de ensino.
“Na minha época, não estudei nenhum herói negro, e isso é algo muito importante para o letramento racial [aprendizado sobre a raça]. Hoje em dia isso é uma obrigação”, comenta a advogada.
“Como vou me sentir inserida em uma escola que não fala sobre meus antepassados.”
Mesmo na Bahia, Estado com o maior número de pessoas negras no Brasil, ela se sentia diferente em locais da elite, predominados por pessoas brancas ou pardas de pele clara.
“A elite baiana é branca ou parda, em um tom de pele que, a depender do ambiente, é embranquecido”, diz.
“Nesses ambientes, vivi violências raciais que não eram nomeadas na época, como os olhares em minha direção e a forma como era tratada em algumas situações.”
A advogada afirma que essa sensação de desconforto a acompanhou ao longo da vida.
“Logo no começo da minha carreira, lá por 2006, quando entrei no mundo corporativo, era muito desconfortável”, afirma.
“Havia muitas piadas com meu cabelo, às vezes havia falas racistas que passavam despercebidas, eram coisas muito chocantes.”
Entre os episódios de racismo que mais a marcaram ao longo da vida está uma vez em que estava em um táxi com a irmã e o veículo foi parado pela polícia.
“Estávamos com malas quando a polícia fez uma abordagem violenta e apontou uma metralhadora para a gente”, diz, sobre a situação que ocorreu no início dos anos 2000.
“Nenhuma amiga minha branca teria passado por algo semelhante. Aquilo foi racismo.”
Outro episódio marcante para ela foi quando questionaram se ela era babá do próprio filho.
“Meu filho tem a pele mais clara, e eu fui confundida como babá dele por duas vezes, uma vez por algumas crianças e outra por uma pessoa adulta.”
Atualmente, ela diz que fica atenta às falas e faz apontamentos quando há algum comentário de cunho racista.
Como funciona uma comissão antirracista
Evie acredita que as marcas da infância e do começo da vida adulta foram sendo elaboradas e nomeadas como racismo com o passar dos anos, principalmente após se tornar mãe.
Ela diz que o filho, que é pardo de pele clara, nunca sofreu racismo na escola e teve poucos episódios assim fora do ambiente escolar.
Mas tudo o que Evie enfrentou e viu amigos passarem fez com que ela entendesse a importância da adoção de medidas focadas no combate ao racismo.
Aos poucos, a escola atendeu aos pedidos da comissão, que hoje tem quase 130 pais e faz reuniões presenciais todos os meses – além de ter um grupo de WhatsApp para conversar sobre o combate ao racismo.
“A gente pressiona a escola (por questões antirracistas), faz eventos e reuniões sobre o tema. Avançou bastante, mas sabemos que ainda tem muito chão”, comenta.
Entre as mudanças na escola, diz a advogada, estão o aumento de negros em cargos como professores ou coordenadores, além da concessão de bolsa a alguns alunos negros de baixa renda do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
“Com essas medidas, os alunos negros passaram se sentir mais empoderados e até criaram um coletivo entre eles, em que discutem ações antirracistas”, comenta a advogada.
O colégio não tem, por enquanto, um censo sobre quantos alunos ou professores são negros.
Evie diz que considera esse dado como fundamental para debater políticas sociais e espera que esse seja levantado pela escola em breve.
Em nota, o colégio Equipe diz que desde a sua fundação se compromete a atuar “na construção de uma sociedade democrática”.
Afirma que tem, entre suas medidas o enfrentamento ao “racismo estrutural da nossa sociedade” e que por isso está “comprometido com a educação antirracista tanto no seu currículo, como em suas ações institucionais”.
O colégio diz ainda que tem se dedicado a ampliar os estudos da história e da cultura africana e afro-brasileira.
“Para além dos estudos em salas de aula, temos desenvolvido ações práticas por meio dos trabalhos de campo, grupos de estudos e projetos sociais, em que nossos estudantes entram em contato com lideranças negras e indígenas e vivenciam aspectos fundamentais de suas culturas”, afirma a instituição em nota.
A escola diz também que tem buscado ampliar a presença de professores negros, “dando prioridade a estes profissionais em contratações.”
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