Metanol, ignorância e tragédia

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Por várias vezes, ao longo dos anos, notícias amplamente divulgadas pela mídia nos lembram de tragédias envolvendo contaminações químicas que resultaram em mortes, incluindo casos com o metanol. Recentemente, esse episódio voltou às manchetes, com várias mortes e intoxicações graves causadas pelo consumo de bebidas destiladas adulteradas. Ainda não se conhece a origem exata nem os responsáveis pelo caso atual, mas a adulteração de alimentos e bebidas, infelizmente, não é novidade. Certamente, os culpados devem ser identificados e punidos conforme a lei. No entanto, é importante refletirmos sobre os fatores que levam alguém a contaminar bebidas com uma substância tão letal quanto o metanol.

A motivação de fraudadores, normalmente, é obter lucros de forma rápida e fácil. Por mais maléfica que uma pessoa possa parecer, a morte dos consumidores dificilmente estaria em seus planos, pois a perda de clientes inviabiliza o negócio. Assim, dentre as muitas hipóteses que poderiam ser levantadas para explicar o caso, podemos supor que essa tragédia esteja associada à falta de conhecimento químico por parte dos responsáveis. Entretanto, é importante reconhecer que ganância, negligência e desprezo pelo risco também contribuem para essas ações criminosas. Esse episódio evidencia a necessidade de a população possuir, ao menos, um conhecimento básico sobre ciência e seus impactos, tanto positivos quanto negativos.

O desconhecimento científico não é exclusivo de países em desenvolvimento. Um estudo publicado na revista britânica Food and Chemical Toxicology (131, 2019, 110560) investigou a percepção de mais de 5.600 pessoas, em países europeus, em relação aos riscos de substâncias químicas. Cerca de 40% afirmaram evitar ao máximo o contato com essas substâncias, enquanto 39% gostariam de viver em um mundo sem elas. Metade dos entrevistados não soube responder se o cloreto de sódio (sal comum) sintético tem a mesma composição química do respectivo sal natural (marinho), e 32% responderam incorretamente. Além disso, 76% acreditaram que “a exposição a uma substância química sintética tóxica é sempre perigosa, independentemente do nível de exposição”, revelando desconhecimento de conceitos básicos de toxicologia e risco químico.

Para entender a confusão em torno de álcoois como o metanol e o etanol, vale lembrar a classificação proposta pelo químico sueco Jöns Jacob Berzelius, no início do século XIX. Segundo Berzelius, substâncias derivadas de minerais deveriam ser classificadas como inorgânicas, enquanto as de origem animal ou vegetal, como orgânicas. Ao longo do século XIX, muitas novas substâncias orgânicas foram descobertas e passaram a ser organizadas em classes, em função de semelhanças químicas e estruturais. Dentre essas classes encontram-se os álcoois, cujo representante mais conhecido é o etanol.

Do ponto de vista químico, os álcoois foram inicialmente considerados derivados da água — cuja fórmula química H₂O é popularmente conhecida —, em que um átomo de hidrogênio é substituído por um grupo contendo carbono e hidrogênio. O álcool mais simples é o metanol (um átomo de carbono), seguido pelo etanol (dois átomos de carbono). Apesar da semelhança estrutural, essas substâncias apresentam diferenças fundamentais, sendo o metanol altamente tóxico.

O etanol é amplamente utilizado em bebidas, como agente antimicrobiano e, no Brasil, também como combustível para automóveis desde a criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), em 1975. O metanol, embora também seja um líquido incolor e volátil, semelhante ao etanol, é extremamente tóxico. Seu consumo pode causar cegueira e até morte, porque no organismo ele se transforma em formaldeído e ácido fórmico — substância que também está presente na defesa química de algumas espécies de formigas —, os quais prejudicam o sistema nervoso e órgãos vitais.

O uso de metanol na falsificação de bebidas pode decorrer da confusão entre as duas substâncias, que podem ser genericamente chamadas de álcoois, reforçando a importância do letramento científico.

Essa tragédia mostra que, em um mundo em que somos dependentes de substâncias químicas em todos os aspectos da vida — alimentos, perfumes, produtos de limpeza, fertilizantes, entre outros —, é fundamental que cada pessoa possua um conhecimento mínimo de química para tomar decisões informadas. Esse conhecimento, por parte dos responsáveis, não teria impedido o ato criminoso, mas poderia ter reduzido a irresponsabilidade com que ocorreu.

A disciplina de química, no entanto, ainda não é popular entre os estudantes, possivelmente devido ao enfoque tradicional na memorização de fórmulas e nomes, voltado especialmente para exames. É necessário repensar seu ensino, despertando interesse e mostrando o valor do conhecimento químico na vida cotidiana. No século XIX, na Europa, a química era uma disciplina prestigiada pela elite intelectual, atraindo milhares de alunos em cursos particulares e também em instituições públicas. Hoje, precisamos resgatar essa curiosidade e interesse, mostrando a todas as classes sociais que a ciência — incluindo a química — traz muito mais benefícios do que riscos. Os danos causados pelo uso e manuseio de substâncias químicas, na maioria das vezes, decorrem da ignorância e da ganância de poucos. Nossa dependência da ciência é irreversível; por isso, educar a população cientificamente é mais do que necessário — é essencial.

Luiz Cláudio de Almeida Barbosa

Professor Titular de Química da UFMG

E-mail: lcab@outlook.com

Belo Horizonte, 03 de outubro de 2025


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