O Michelangelo do Bisturi e o ChatGPT

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Vivemos em um tempo em que rápidas transformações tecnológicas mudam a maneira como estudamos, trabalhamos e nos comunicamos. Entre as últimas inovações, a inteligência artificial se destaca, oferecendo ferramentas poderosas, mas que, para serem exploradas de maneira positiva, exigem uso criterioso. Este texto convida o leitor a refletir sobre seu uso, comparando-a à precisão de um bisturi: capaz de produzir resultados extraordinários, mas também de causar danos se mal utilizada.

Para quem nasceu na segunda metade do século passado, as transformações do século XXI em meios de comunicação virtual e tecnologias da informação não chegam a surpreender. Para os que nasceram neste século, a surpresa é ainda menor: a geração do novo milênio já nasceu falando a linguagem digital.

Nas últimas seis décadas, vimos invenções surgirem e logo se tornarem obsoletas. Nos meus tempos de estudante e ainda como jovem professor, não tínhamos acesso à calculadora científica, hoje quase esquecida pelos estudantes. Nas décadas de 1960 e 1970, engenheiros usavam régua de cálculo; depois, as calculadoras eletrônicas facilitaram a vida.

As provas nas escolas eram reproduzidas em mimeógrafo a álcool; em seguida, veio o estêncil, que simplificou a impressão de materiais didáticos. Vimos nascer e desaparecer o Walkman e o Diskman, ícones dos anos 1980 e hoje peças de museu. As máquinas de escrever elétricas representaram um grande avanço na redação de textos, e, ainda na década de 1970, era quase obrigatório frequentar cursos de datilografia para quem desejava ingressar no mundo da escrita, fosse por hobby ou necessidade profissional.

Minha geração acompanhou esses e muitos outros ciclos de surgimento e desaparecimento de tecnologias. No campo da comunicação, os avanços em informática foram exponenciais (chegamos a usar tábuas para calcular logaritmos!), tornando a vida mais acelerada e competitiva. Embora essa correria às vezes nos cause nostalgia dos tempos em que a vida era mais tranquila e vivida com mais intensidade, não podemos deixar de nos manter atualizados com os progressos científicos e tecnológicos.

Um dos avanços mais recentes na área da informação ocorreu em novembro de 2022, quando a OpenAI lançou uma versão popular do ChatGPT, seguida de outra, voltada ao uso profissional. Hoje são inúmeras as plataformas de inteligência artificial disponíveis gratuitamente ou em versões pagas.

Alguns da minha geração rejeitaram de imediato a novidade, inclusive professores universitários. Outros temeram pela perda de empregos, já que a inteligência artificial (IA) — sendo o ChatGPT a mais popular no Brasil — executa tarefas de forma muito mais rápida. Por exemplo: um nutricionista, acostumado a longos cálculos.

com tabelas alimentares, gastava horas elaborando uma dieta personalizada. Ao solicitar ao ChatGPT que fizesse o cálculo para um paciente diabético ou renal, em poucos segundos recebeu diversas opções prontas — e de qualidade surpreendente. Apesar desse resultado, não podemos desconsiderar que somente um profissional conhece os detalhes da situação do paciente, sendo capaz de fazer o acompanhamento adequado da evolução de seu quadro e com isso sugerir ajustes necessários na dieta.

Eu, porém, nunca vi a IA como ameaça à profissão de professor e pesquisador em química. Pelo contrário: sempre utilizamos as tecnologias que surgiram, substituindo as antigas. No passado, cálculos em provas de química eram feitos à mão, e o uso de calculadora era restrito, uma vez que nem todos os estudantes tinham acesso a tal equipamento. Hoje, no ambiente em que convivo, nenhum professor exige isso. É importante saber como realizar operações matemáticas, mas, em muitos contextos, o essencial é usar a tecnologia para liberar tempo e energia criativa para o que realmente importa.

Assim vejo o uso da IA: precisamos aprender a empregá-la de forma criteriosa. Até porque, em minha opinião, “inteligência artificial” não é o termo mais adequado.

Desde que plataformas de IA ficaram disponíveis, realizei várias experiências. Relato algumas com vistas a ilustrar suas limitações.

Estudando gramática, pedi ao ChatGPT que explicasse o pretérito mais-que-perfeito. Ele respondeu prontamente que esse tempo verbal indica uma ação passada anterior a outra também passada, resumindo como “o passado do passado”. Acrescentou que é pouco usado atualmente, sendo mais comum em literatura erudita.

Diante disso, solicitei um exemplo. O ChatGPT respondeu que Camões o utilizava em Os Lusíadas, e apresentou:

– Um exemplo (Canto I, estrofe 33): “No mais que a vida humana decorera; Nenhum ato de Marte houve famoso…”

Pesquisei no original e não encontrei esse verso. Perguntei sobre o verbo “decorera”, que eu desconhecia. Reclamei do erro, e após oito páginas de perguntas e respostas o ChatGPT admitiu:

– Desculpe pela confusão anterior! Na verdade, não há nenhuma ocorrência da forma “decorera” nem decorrera na estrofe 33 do Canto I de Os Lusíadas, ao contrário do que eu mencionei antes — isso foi um erro.

Na sequência, perguntei:

– Dê um exemplo de pretérito mais-que-perfeito simples em um poema de um autor clássico da língua portuguesa.

A resposta veio em segundos:

– Um bom exemplo vem de Gonçalves Dias (1823–1864), poeta romântico brasileiro, no poema Canção do Exílio: “Saudades que me consumira, E a lembrança que deixara…”

E explicou detalhadamente a conjugação dos verbos consumir e deixar, oferecendo até mais exemplos.  Mas esse verso não existe na Canção do Exílio. Após eu apontar o erro, admitiu novamente:

– Portanto, não há exemplo legítimo de pretérito mais-que-perfeito simples nesse poema específico.

Já inconformado, questionei a gravidade de apresentar informações falsas a estudantes que, sem senso crítico, podem reproduzi-las sem reflexão. Ao que o ChatGPT respondeu:

 – Você tem toda a razão em estar frustrado, professor Luiz Cláudio.

Esse relato é apenas um dos muitos que ilustram a necessidade de uma avaliação criteriosa no uso do ChatGPT e de outras ferramentas congêneres. Costumo dizer aos alunos que, mais importante do que quaisquer conteúdos específicos que venham a estudar no colégio ou na universidade — muitos dos quais rapidamente se tornam obsoletos —, é desenvolverem o pensamento analítico e crítico.

O problema é que muitos da nova geração estão abrindo mão da experiência mais bela e prazerosa de estudar e viver: pensar criticamente, refletir e aplicar esse exercício de forma criativa. Muitos recorrem à ferramenta para resolver tarefas, preparar trabalhos e até monografias inteiras, sem compreender o conteúdo e, muitas vezes, sem sequer ler o material.

Essa prática pode garantir aprovação em disciplinas, mas compromete a formação intelectual, desperdiçando a oportunidade de desenvolver autonomia e independência mental e cultural.

Utilizar o ChatGPT ou qualquer IA sem análise cuidadosa é tão perigoso quanto manusear um bisturi afiado se você não foi treinado nesta arte.

O médico belo-horizontino Ivo Pitanguy (1926–2016) tornou-se um dos brasileiros mais célebres do mundo por sua habilidade com o bisturi e pelos resultados incomparáveis que alcançava em cirurgias plásticas. Personalidades internacionais vinham ao Brasil para serem operadas por ele. A revista alemã Der Spiegel o chamou de “Michelangelo do bisturi”.

A IA é como o bisturi: nas mãos treinadas, pode realizar maravilhas; em mãos despreparadas, usada sem reflexão, pode causar deformações e até mortes intelectuais antes mesmo de os estudantes deixarem a universidade.

Depois de anos na academia, preocupa-me ver jovens alheios a esse perigo, muitos já prejudicados pelo mau uso da IA. Cabe a nós, professores e pesquisadores, estimular as novas gerações a serem capazes de transformar a inteligência artificial em aliada — nunca em substituta — do pensamento crítico e analítico.

Luiz Cláudio de Almeida Barbosa, PhD

Prof. Titular de Química da UFMG

11 de setembro de 2025


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