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Fiscal de chororô

Não sei se o registro de marcas e patentes do INPI tem conhecimento desse fato, mas ali por volta de 1980 minha avó Noquinha patenteou o direito ao choro. Se não por todo o território nacional, pelo menos na circunscrição lacrimal da minha família. Só ela tinha o direito de verter gotas espessas e lindíssimas, a princípio em casamentos, batizados, crismas e no último capítulo da novela das seis.

Com o tempo e a profissionalização de seu ofício, porém, vovó passou a oferecer o serviço de pranto on demand. Num pacote completo que incluía uma puxada agradável de assunto, para cativar o ouvinte. Seguida pela inserção de algum tema desolador, que fazia um riacho brotar ao vivo de sua caudalosa fonte ocular.

Fosse por reprise da Paixão de Cristo, canário que parou de cantar ou pela recordação do conhecido que se jogou do trem na trágica final da Copa de 1950, Noquinha só fechava as comportas da dor quando alguém lhe oferecia um lencinho ou o almoço era servido. Fofoca boa, recém-chegada pelo muro da vizinha, também lhe cortava imediatamente o fornecimento.

Por conta de tão pessoal e intransferível lugar de choro, ai de quem mais se atrevesse a vir com chorumelas. “Manteiga derretida!”, “Que chatura, tá parecendo sua avó!”, “Engole o drama, vai…”. E assim, gerou-se uma crise hídrica profunda entre filhos e netos. Um desabastecimento coletivo, que transformou nossas emoções mais legítimas em volume morto.

Corta para: a ausência de lágrimas na brilhante performance de Fernanda Torres em “Ainda Estou Aqui”. Polemizada por haters, louvada pela crítica. E justificada pela atriz, que citou a mãe, Fernanda Montenegro, numa entrevista a respeito. “Na tragédia, se você for Hécuba ou Antígona, você não pode chorar. Se Hécuba começar a chorar nas primeiras notícias ruins que receber, no fim ela vai parecer uma barata”.

Por mim? Tanto faz. Cada heroína, trágica ou cotidiana, que lide com sua aridez lamuriosa. “Aqui pode”, “Aqui não pode”, “Chora, mas chora bonito”, “Deságua no close!”, “Tira, ficou cafona…”. Pelos poderes flúvio-plúvio-lacrimais investidos por mim em mim mesma, dá licencinha, mas não serei fiscal de chororô alheio. Cada um sabe da sua própria cebola e quem vai permitir que eu borre meu rímel à prova d’água sou eu mesma. Parafraseando o ditado, “quem não chora não… chora”. Snif.


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