Professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da frente de Manejo Integrado do Fogo (MIF) na Rede Biota Cerrado, Isabel Belloni Schmidt é uma das principais defensoras da implementação de prática para a prevenção e o combate de incêndios. A docente foi uma das pioneiras no uso do MIF no cerrado, em 2014, por meio do Programa Piloto de Manejo Integrado do Fogo, importando técnicas de queimadas de baixa intensidade utilizadas há décadas em países como Austrália e África do Sul.
No Brasil, que registrou em 2024 o maior número de incêndios florestais em 14 anos, a prática ainda engatinha. Há apenas um mês, o MIF se tornou uma política nacional por meio da Lei nº 14.944 de 2024, após ficar em discussão por seis anos, conta a especialista. “A implementação da política depende de muitos fatores, e uma boa parte deles ainda não está disponível. Na nossa cultura, a área ambiental só é lembrada quando tem uma catástrofe ou um desastre. Ter uma quantidade maior funcionários especializados em prevenção e dispor de dinheiro no orçamento para isso é muito raro. Mesmo que esse investimento evita grandes tragédias”, pontua.
Leia, a seguir, a entrevista com a pesquisadora Isabel Schmidt sobre o tema.
O que é o Manejo do Fogo Integrado (MIF) e qual sua importância?
O manejo integrado do fogo é um jeito de se planejar e manejar uma paisagem como um todo. Não é só sobre usar o fogo, mas entender o fogo como uma ferramenta, considerando as características geográficas da região. O objetivo é evitar incêndios, e uma das formas de se fazer isso é por meio de queimas prescritas, realizadas no fim da estação chuvosa e no início da seca. O MIF é como se fosse um remédio. Depois de aplicado, ele protege o solo de futuros incêndios que venham a ocorrer na região. Por exemplo, numa área de vegetação nativa, quando o incêndio chega na região que já foi queimada pela interferência do MIF, ele para porque não tem mais ‘combustível’. Por isso, essa é uma forma barata de prevenção.
Dá para apontar quais as causas dos incêndios que vêm assolando o país?
O fogo que estamos vendo tem duas causas: ou descuido ou ação criminosa. Na natureza, o fogo pode ser iniciado por dois motivos: por vulcões e por raios. Aqui no Brasil, não temos o vulcão, então o raio é a única opção. No cerrado, por exemplo, durante o período de chuva, há incidência de queimadas naturais por conta dos raios. Isso também serve para outros biomas como o pampas e o pantanal. O que não acontece no período de seca, porque não há chuvas e, portanto, não há raios.
Então, dá para afirmar esses incêndios são criminosos?
Não dá para afirmar que são criminosos. Mas tem origem na ação humana com certeza, justamente porque a única fonte natural do fogo é o raio e o vulcão. Também não dá para definir se é intencional ou não. Mas tudo indica que há uma intenção por trás em se fazer uma queimada grande. Tem todas as características para isso. Uma das evidências é a agressividade desses incêndios e o fato de eles atingirem estradas, que geralmente servem de bloqueio ao fogo. E, agora, a gente vê ele passando de um lado para o outro da pista. Os incêndios causados pela interferência humana de forma irresponsável são assim: muito mais intensos e mais rápidos. A altura das chamas são muito maiores e a temperatura ultrapassa os 800 graus, consumindo mais a vegetação e queimando copas de árvores inteiras. Isso não acontece durante o MIF.
Por qual motivo?
Porque as condições ambientais nas quais o MIF é aplicado, quando há o uso de fogo, permitem que isso não aconteça. Geralmente, a queimada prescrita, uma das técnicas do manejo, é feita em março ou em abril, e de noite, quando o solo está mais frio e úmido por conta das chuvas. Isso faz com que as chamas sejam menores e a temperatura do fogo, mais baixa, em torno dos 300 ou 400 graus. Assim, ele vai perdendo a força até acabar, sem que seja preciso agir. É claro que, mesmo apagando sozinho, a equipe sempre volta pra conferir se está tudo certo.
E se o fogo não apagar naturalmente?
Se ele não se apagar sozinho, é porque foi feito numa época não segura.
Há diferença de significado entre “incêndio” e “queimada”?
Sim, e muitas vezes o uso dessas palavras é feito de forma equivocada. Enquanto que “queimada” diz respeito ao fogo sob controle, a palavra incêndio é utilizada nas situações em que o fogo saiu do controle. Qualquer queima que sai do controle se torna um incêndio.
Como fazer com que o conhecimento sobre o manejo do fogo chegue até agricultores e proprietários de terras rurais?
No Brasil, o uso do MIF começou há cerca de 10 anos. Desde então, o manejo tem sido realizado prioritariamente em áreas de conservação ambiental e em terras indígenas, com apoio do Ibama, da Funai e do ICMBio, e o que se observa é que o número de incêndios diminuiu muito nos locais onde foi aplicado. Mas ainda não há o uso do MIF em áreas privadas ou estaduais. A aprovação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo [Lei nº 14.944, sancionada em 31 de julho de 2024], que ficou 6 anos em discussão, vem para fomentar a adoção do manejo do fogo também nesses locais. Só assim vamos conseguir mudar esse cenário de só correr atrás do fogo depois que ele já está fora de controle. Só apagar incêndio não vai nos tirar desse ciclo periódico de destruição. Precisa haver o manejo em áreas rurais e de conservação, inclusive nas nativas. É mais inteligente investir mais em prevenção do que no combate.
Como vai funcionar a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF)?
A lei prevê vários instrumentos para que estados e municípios façam o manejo da forma adequada. Até então, o MIF vem sendo utilizado só pelo governo federal e pelo estado do Tocantins, por meio do Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins). Esperamos que os outros entes da federação também sigam esse modelo. Isso envolve uma questão institucional sobre treinar pessoas, tanto técnicos agrícolas, quanto produtores rurais. Todos os profissionais da área ambiental devem conhecer e se apropriar dessas técnicas. Então, é possível que haja uma preparação e uma disseminação do conhecimento sobre essa ferramenta. A implementação da política nacional do MIF depende de muitos fatores, e uma boa parte deles ainda não está disponível. Na nossa cultura, a área ambiental só é lembrada quando tem uma catástrofe ou um desastre. Ter uma quantidade maior funcionários especializados em prevenção e dispor de dinheiro no orçamento para isso é muito raro. Mesmo que esse investimento evite grandes tragédias.
Nos últimos anos, é notável o aumento de incêndios no cerrado?
Sim, tem tido um aumento de incêndios no cerrado, mas, pior do que isso, tem aumentado o desmatamento. Inclusive, por meio de incentivos ambientais, que tiram a vegetação nativa para colocar o agronegócio no lugar. E isso é muito grave. O cerrado funciona como a caixa d’água no Brasil. Das 11 nascentes dos principais rios do Brasil, 8 estão no cerrado. O solo desse bioma funciona como uma esponja: ele absorve a água da chuva e distribui pelas raízes que, por serem longas, permitem que a água escorra mais profundamente. Se essas raízes são substituídas por raízes curtas, como as da soja e do milho, você muda o ciclo da água, e, consequentemente, provoca mudanças na intensidade das chuvas, impactando o ciclo de chuva do Brasil inteiro. Quando deixa de ter vegetação nativa, deixa de ter produção de água.
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Ainda estamos em risco de enfrentar mais queimadas?
Com certeza. Enquanto tiver gente irresponsável, vamos correr esse risco. Os períodos de chuva já foram alterados. Então, ainda vamos ter muitos dias de seca e de altas temperaturas. E fica difícil inibir esses incêndios tendo poucos fiscais ambientais. Tem pouca gente trabalhando na área ambiental no Brasil. Isso diminuiu a nossa capacidade de identificar crimes de incêndio e desmatamento logo no início. A capacidade de punição também é baixa, e a impunidade incentiva as ações criminosas.
O professor de biologia Reuber Brandão, da UnB, falou em entrevista ao CB Poder que “não há hospital para os animais”. Falamos muito de como esses incêndios afetam a vida humana, mas e como fica a fauna?
A mortalidade dos animais aumenta muito, principalmente entre os filhotes, porque eles têm uma dificuldade maior de fugir. E, às vezes, mesmo quando sobrevivem a incêndios, morrem depois em decorrência de feridas, falta de comida, ou por atropelamento na busca por alimento. Muitas aves começam a fazer ninhos e muitas plantas despejam suas sementes no chão nessa época como uma forma de preparação para o período chuvoso, e esses ciclos interrompidos pela destruição. As queimas prescritas têm muito menos impacto na flora: nem todas as plantas são queimadas. Sobram plantas e comida, porque as chamas são baixas e muitas vezes não chegam a atingir os ninhos. O fogo é mais brando, as temperaturas são menores, tem menos vento e, por isso, ele se torna uma ferramenta, não uma ameaça.
O que é preciso para que o uso do fogo seja feito de forma responsável?
O uso do fogo como uma ferramenta de conservação e de manejo da paisagem é uma quebra de paradigma. É muito mais fácil a gente ver o fogo como inimigo, como algo que é sempre ruim. Mas é preciso entender que o fogo tem várias faces, e que ele pode sim ser um aliado se usado de forma responsável. É como o uso do carro. Ele pode se tornar uma arma quando mal utilizado. É preciso uma legislação, e que as pessoas sejam capacitadas para saberem como utilizar. As vias precisam ser sinalizadas, haver limites de velocidade, pardais, sinais de trânsito. Assim deve ser com o fogo. Se regulamentado, através do treinamento das pessoas, do ensinamento e da conscientização da sociedade de que o fogo pode ser uma ferramenta, vamos como consequência vivenciar uma redução dos incêndios em todos os tipos de vegetação.
Poderia dar mais um conselho sobre como evitar essas catástrofes?
A melhor coisa a se fazer para evitar incêndios é não usar o fogo de forma alguma em momentos críticos. E usar nosso voto de forma consciente para eleger representantes que priorizarem o meio ambiente.
Saiba Mais
Denuncie incêndios irregulares
Ligue para a Linha Verde do Ibama, pelo número 0800 618 080, ou para o Corpo de Bombeiros: 193, ou para a Polícia Civil: 147. As denúncias também podem ser feitas pessoalmente no órgão estadual responsável pelo meio ambiente mais próximo ou na sede do Ibama, em Brasília.
O crime de incêndio consiste em iniciar um incêndio que coloque em risco a vida ou os bens de outra pessoa, e está descrito no artigo 250 do Código Penal.
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