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Manejo integrado do fogo: uma estratégia de combate aos incêndios

Fogo contra fogo. Pode parecer contraditório, mas uma das maneiras de se evitar incêndios florestais devastadores pelo país consiste precisamente em promover queimadas, chamadas de prescritas ou controladas. A técnica faz parte de um conjunto de estratégias que compõe o chamado Manejo Integrado do Fogo (MIF) e tem eficácia comprovada cientifica e historicamente na prevenção de incêndios e na conservação da biodiversidade, segundo especialistas consultados pelo Correio.

Uma pesquisa realizada no território indígena Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, revelou que o uso do MIF reduziu a frequência de incêndios em 80% e o tamanho da área queimada em 53%. O estudo acompanhou os registros de fogo na região por 18 anos, comparando períodos com e sem o uso de queimas prescritas, uma das estratégias manejo integrado do fogo, que como objetivo “limpar” o terreno para o período de estiagem, eliminando o material de biomassa acumulado por meio do fogo.

“A queima prescrita é como se fosse um remédio”, afirma Bruno Cambraia, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “Numa área de vegetação nativa, quando o fogo chega onde já foi queimado pela interferência do MIF, ele para por não ter mais ‘combustível”, descreve o especialista. “Todo lugar pode e deve ter o MIF. Onde o fogo está presente, precisa do manejo integrado”, completa. Cambraia participa da seleção e treinamento de brigadistas que atuam com o MIF em unidades de conservação. As operações de manejo incluem ações de educação ambiental, orientação de boas práticas e campanhas de conscientização.

Para implementar o MIF, é preciso elaborar uma análise sobre onde e quando ele deve ser aplicado e critérios a serem seguidos. Em geral elas são aplicadas no fim da estação chuvosa ou no início da seca, em dias com temperaturas amenas, pouco vento e solo mais úmido e frio ainda marcado com a água das chuvas. “Isso faz com que as chamas sejam menores e não ultrapassem os 400 graus. É um fogo muito menos danoso e vai perdendo a força sozinho, sem que seja preciso agir”, detalha a professora do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília, Isabel Schmidt. Essas características diferenciam o fogo usado no MIF com aquele visto em São Paulo nas últimas semanas.

“O fogo que vimos em agosto só aconteceram por dois motivos: ou por descuido ou por ação criminosa”, observa Schmidt. A especialista em MIF no Cerrado descarta a possibilidade dos incêndios terem sido causados por fatores naturais. “Na natureza, o fogo pode ser iniciado por dois motivos: ou por vulcões ou por raios. Aqui no Brasil não temos o vulcão, então o raio é a única opção”, comenta.

Biomas específicos

Os incêndios naturais acontecem em biomas específicos, conhecidos como “adaptáveis ao fogo”, e durante a estação chuvosa. O professor do departamento de Geografia da Universidade do Estado do Pará (UEPA), Daniel Borini Alves, conta que o Cerrado, assim como o Pampa e o Pantanal, convive com queimadas naturais periódicas e, por “ter uma relação histórica com o fogo, desenvolveu fisionomias com mecanismos de resiliência”. O mesmo não acontece na Mata Atlântica nem na Amazônia. Por serem biomas sensíveis ao fogo, onde queimadas naturais não fazem parte da natureza desses ecossistemas, ressalta Daniel Alves. E essas informações também são relevantes para o uso do fogo no MIF.

Em São Paulo, a maior parte do território é originalmente área de floresta. Por essa razão, o uso do fogo deve ser evitado. “As estratégias ali vão ser muito mais voltadas a evitar qualquer tipo de ocorrência pelo fogo”, informa Alexandre Pereira, o analista ambiental do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Em áreas agrícolas, recomenda-se o uso da queima controlada. Ela é indicada, por exemplo, para limpar terrenos com plantas secas acumuladas, de modo a evitar que esse material se torne combustível em caso de incêndio. “Essa queima acontece dentro de uma área delimitada por meio de aceiros, que são faixas de terreno desprovidas de vegetação, que impedem o fogo de avançar. Isso possibilita haja um controle sobre onde ela começa e onde ela termina. Por isso o nome ‘queima controlada’, explica Pereira.

Comitê Nacional

Em 31 de julho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PNMIF), por meio da Lei nº 14.944. O documento formaliza mecanismos de prevenção e combate a incêndios florestais em áreas públicas e particulares tendo o fogo como elemento central no planejamento e na gestão de políticas públicas, levando em consideração aspectos ecológicos, culturais, socioeconômicos de comunidades e ecossistemas.

Levar o MIF a outras unidades federativas do país, a municípios e em territórios privados aparece como um dos primeiros desafios. Atualmente, apenas o Ibama e o ICMBio atuam no manejo integrado do fogo no Brasil. O primeiro é responsável por 30 áreas indígenas; o segundo está à frente da ação em 30 unidades de conservação do Brasil. Entre os estados, apenas Tocantins tem o manejo integrado do fogo inserido em suas políticas públicas, por meio do Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins).

O Ministério do Meio Ambiente informou ao Correio que o governo já está trabalhando para criar o Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo. O grupo será um reforço no time de brigadistas dentro dos órgãos ambientais. Segundo o MMA, o Ibama e ICMBio têm cerca de 4,3 mil servidores na ativa, além de mais de 3 mil brigadistas em atuação, incluindo 1.468 na Amazônia.

O quadro de servidores é pequeno perto da realidade a ser enfrentada. Só em agosto, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) identificou 36.088 focos de incêndio na Amazônia. No Pantanal, para onde o ministério mobilizou 823 funcionários para combater os incêndios, apoiados por 17 aeronaves e 50 embarcações, foram 5.886 focos, 9% do total nacional para o mês. Os reforços para combate no Cerrado não foram mencionados pelo MMA ao Correio, ainda que o bioma concentre 27,5% do total de focos de incêndios no Brasil, praticamente 18 mil em números absolutos. Agosto registrou 105% mais focos de calor do que julho, o maior registro desde 2010.

Até o início de setembro, a Amazônia responde por 50,8% dos focos de incêndios de 2024; o Cerrado por 30,5%; a Mata Atlântica por 9,1% e o Pantanal por 6,8%. Em número absolutos, os biomas contabilizaram respectivamente: 69.099, 41.390, 12.333, e 9.266. Em todo o país, os satélites do Inpe registraram 135.898 focos de incêndio, reflexos da pior seca em 40 anos para biomas como o Pantanal e Amazônia, segundo o Ministério do Meio Ambiente.

Otimismo

Especialistas em meio ambiente demostraram otimismo com a chegada da PNMIF. Eles consideram um avanço a promessa de ampliar a capacitação, o número de treinamentos e o fornecimento de bons equipamentos para o uso seguro e responsável do fogo. O receio fica por conta da questão de disponibilidade de recursos. “É preciso entender a dimensão do problema. Ter o Prevfogo, Bombeiros, Defesa Civil, Ministério do Meio Ambiente, todos eles bem aparelhados e com bastante financiamento para conseguirem pôr em prática essa política e mudar esse cenário”, defende Daniel Borini, professor da Universidade Estadual do Pará (UEPA). 

O financiamento também é necessário para a implementação de campanhas de educação sobre o uso correto do fogo e o controle efetivo para impedir incêndios criminosos. “Para conseguirmos mudar esse panorama e, no futuro, investir mais em prevenção, que é mais barata e efetiva, do que no combate, precisamos mudar as lógicas de investimento”, acrescenta Danilo Bandini, da Universidade Federal do Mato do Grosso do Sul (UFMS).

“A PNMIF certamente nos auxiliará a enfrentar situações emergenciais como as que estamos vivenciando nos últimos dias”, diz Daniel Borini. Ele pontua que até na Austrália, país com planos de gestão do fogo mais consolidados, o cenário climático extremo tem sido desafiador. “Por isso, precisamos seguir consolidando estratégias de MIF para os múltiplos contextos que as diferentes paisagens brasileiras apresentam”, defende.

Tecnologia ancestral

Até se tornar uma política nacional, o MIF passou por um longo processo de pesquisa e aprimoramento. O conhecimento dos povos originários serviu de base para os avanços científicos. “As comunidades que vivem no local sabem ler o ambiente, reconhecem quando há necessidade do uso do fogo para renovar o capim ou frutificar as espécies. Então, alinhamos isso à ciência, com o uso de imagens de satélite, e conseguimos obter excelentes resultados respeitando os objetivos econômicos, sociais e culturais daquela comunidade”, conta o analista ambiental do PrevFogo Alexandre Pereira.

O monitoramento remoto feito por imagens via satélite permite que seja feita a identificação do acúmulo de material seco nas matas. “A partir dessa identificação, eliminamos esse ‘combustível’ antes da chegada dos meses mais críticos de estiagem”, explica Pereira. A professora da UnB Isabel Schmidt acrescenta: “É um dos principais mecanismos por trás da escolha das áreas onde a queima prescrita do MIF vai ser aplicada. A partir da eliminação desse material acumulado, criamos pequenos mosaicos com o fogo, que vão funcionar como barreiras para quando os incêndios começarem”, acrescenta.

A terra indígena Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul — local onde realizou-se um dos principais estudos científicos sobre a eficácia do MIF — foi pioneira em receber a investimento financeiro e humano do governo federal. Em 2015, o Ibama passou a atuar na área, em conjunto com o Projeto Noleedi (fogo, na língua Kadiwéu), coordenado pelo professor Danilo Bandini, da UFMS. O docente conta que o projeto contribuiu com diversas iniciativas de políticas públicas nacionais, inclusive de forma direta, por meio do Plano de Ação para o Manejo Integrado do Fogo no Bioma Pantanal, de 2023, no qual os membros do projeto participaram. O reflexo disso, segundo ele, está no texto da PNMIF, que se baseou em leis e normas nas quais o projeto foi citado ou consultado.

Personagens importantes na formação da política nacional, os Kadiwéu são os povos que mais sofrem no Brasil em decorrência dos incêndios. Segundo dados do Greenpeace, eles ocupam o território indígena com maior número de focos, com 1.256 ocorrências até o fim de agosto. 

O termo tecnologia ancestral, cunhado pela escritora e pesquisadora Morena Mariah, fundadora do Instituto Afro Futuro, se refere ao estudo científico do conjunto de técnicas, processos e meios anteriormente experimentados por povos tradicionais. Ela explica: “É rever a ciência antiga com as lentes do futuro e buscar no passado as ferramentas que nos permitam ‘superviver’ ao invés de sobreviver”.

A pesquisa no território indígena Kadiwéu foi realizada pela UFMS, pela UnB e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, de Campo Grande, e com Associação dos Brigadistas Indígenas da Nação Kadwéu. O estudo conclui que o MIF tem a capacidade de modificar o regime do fogo, com impactos na sua magnitude, nas distâncias temporais entre incêndios e, inclusive, na redução da interferência climática sobre o comportamento do fogo no local.

A evolução do uso do MIF no mundo

O manejo de fogo na Austrália concentra-se na região norte do país, onde ficam muitas unidades de conservação com vegetação savânica tropical e subtropical, e na região sul da África e Norte da Austrália. Veja datas importantes dessa técnica ambiental. 

1950 — Começa a ser implementado, nos Estados Unidos, o manejo de fogo em unidades de conservação, experimentalmente no Parque Nacional de Everglades, na Flórida.

1954 — Na África do Sul, o Parque Nacional Kruger recebe o primeiro projeto de pesquisa de longo prazo para avaliar os efeitos de diferentes políticas de manejo de fogo.

2006 — Na Austrália, o Western Arnhem Land Fire Agreement (WALFA) é lançado, como o primeiro projeto a implementar ações de manejo tradicional de fogo com base em conhecimentos e práticas aborígenes para gerar créditos de carbono.

2014 — Começa o programa piloto de implementação de manejo de fogo no Cerrado para conservação de áreas de vegetação nativa do bioma. Pela primeira vez no Brasil, queimadas prescritas de baixa intensidade são implementadas em Unidades de Conservação do Cerrado como estratégia de manejo.

2015 — O Manejo Integrado do Fogo (MIF) começa a ser utilizado pelo Ibama na Terra Indígena Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul

2024 — É sancionada a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo.

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