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“Pessoas morrem na fila, sem conseguir tratamento”, diz presidente da ABCDT

A crise no setor de diálise no Brasil tem se agravado nos últimos anos, com clínicas enfrentando dificuldades financeiras e incapacidade de atender à crescente demanda de pacientes renais. Em entrevista ao Correio, o presidente da Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplantes (ABCDT), Yussif Ali Mere Júnior, falou sobre a precariedade do financiamento na área, as disparidades regionais e o impacto direto na saúde dos pacientes. Com um número cada vez menor de clínicas e do crescimento da fila de espera para tratamento, especialmente nas regiões mais carentes, o nefrologista enfatizou a necessidade de medidas estruturais que possibilitem o acesso adequado à saúde renal no país.

Qual é a atual situação das clínicas de diálise no Brasil?

Atualmente, temos dois cenários distintos. A diálise pública era mantida apenas com recursos do governo federal. Mas a saúde, dentro do princípio de sustento tripartite, deve ser financiada por municípios, estados e a União, o governo federal. Nós começamos a buscar esses recursos, já que o Sistema Único de Saúde não conseguia aumentar a tabela SUS, que determina os preços da sessão de diálise. Ficamos anos sem aumento. Quando os reajustes vieram, não foram suficientes. Então, nos nove estados, além do Distrito Federal, que possuem um complemento de verba pelo governo estadual à verba do governo federal, as clínicas hoje estão com uma situação melhor, conseguiram aumentar vagas, fazer parte dos investimentos necessários na renovação de equipamentos. Nós precisamos de mais vagas. Estimamos dois mil pacientes pelo Brasil afora dialisando dentro de hospitais, internados, por falta de vagas em clínicas de diálise. O ambiente hospitalar é perigoso ao paciente e isso tem um custo muito alto pro sistema de saúde público.

E qual o maior problema?

O maior problema do subfinanciamento agora persiste nos outros 17 estados que não recebem complemento do governo estadual. Nesses estados, as clínicas estão ficando depauperadas porque elas não têm mais a capacidade de investir em infraestrutura para melhorar a qualidade do serviço. E há mais pacientes em filas de espera. Pessoas morrem sem conseguir tratamento para a saúde renal. Muitas clínicas já fecharam as portas e desistiram. Nos últimos seis anos, cerca de 40 foram fechadas.

As clínicas garantem o tratamento adequado aos pacientes renais, especialmente em regiões mais carentes?

Os mais carentes estão no Norte e Nordeste. Nesses estados, a clínica recebe R$ 240 apenas pela sessão de diálise. Deveria receber ao menos R$ 310. A clínica fica sem condições de investir na qualidade do atendimento. Ou seja, há um subfinanciamento, que é um recurso insuficiente que o Ministério da Saúde paga, e ainda ocorre, muitas vezes, atraso do repasse pelas secretarias estaduais e municipais de saúde. O governo federal paga corretamente, mas governantes seguram o dinheiro. Eles deveriam pagar em até 5 dias úteis, mas alguns ficam meses retendo o repasse, atrasando o pagamento de um serviço já prestado. Aí, tem-se um agravamento da situação financeira da clínica. Os problemas ficam incontornáveis. Nessas regiões, temos somente a Bahia cofinanciando a diálise.

Quais outros estados cofinanciam?

Atualmente, apenas os estados de Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Santa Catarina, Sergipe e Amazonas, além do Distrito Federal, auxiliam com verbas para complementar o financiamento da diálise. Neles, constata-se a diminuição da fila de espera para entrar em hemodiálise crônica ambulatorial, a desospitalização e, consequentemente, a abertura de leitos hospitalares para outros pacientes que realmente precisam de internação. Os estados do Ceará e do Paraná estão em fase de estudos para implementação do auxílio.

Há alguma medida quanto à falta de repasse de recursos por parte das secretarias de saúde no funcionamento das clínicas de diálise?

A medida, quando ocorrem atrasos, é mandar ofícios, cobrar, denunciar para a imprensa e, até, adotar medidas judiciais. Mas temos clínicas com parcelas atrasadas há mais de um ano.

Existem propostas para melhorar a acessibilidade ao tratamento?

Os pacientes que enfrentam longas jornadas até as clínicas de diálise prejudicam muito a qualidade de vida. Não conseguem estudar, trabalhar, perdem muito tempo na estrada. Para eles, seria importante ter a diálise peritoneal, em que o paciente faz o tratamento em casa e vai à clínica uma vez por mês ou a cada dois meses. Mas, hoje, apenas 7% dos pacientes conseguem ter esse acesso, porque essa modalidade de terapia é mais cara, apenas uma empresa a fornece e o valor pago pelo governo não permite oferecê-la a mais pacientes. O governo precisaria pagar o valor da peritoneal para que mais pessoas tenham acesso. Em cidades pequenas não é viável ter mais clínicas, pois é necessário ter 250 pacientes para que uma clínica tenha viabilidade financeira. Em cidades pequenas, é difícil ter esse volume.

O que mais precisa ser feito para que o Brasil atenda às necessidades de todos os pacientes?

É fundamental que cada unidade de diálise se torne um centro de nefrologia, que cuide efetivamente do paciente, desde o momento em que ele apresenta o primeiro sinal de doença renal até o momento em que ele precisa fazer a diálise. O ideal seria ter uma linha de cuidado, ou seja, nós não vamos cuidar do paciente quando ele está fazendo só a diálise. Nós vamos cuidar do paciente anos antes dele precisar. Quem sabe até revertendo a doença, e não precisando mais entrar em diálise. Se um diabético ou um hipertenso for bem tratado, é possível que a doença não apareça. Hoje, o Brasil está atrasado em termos de tratamento conservador. Os médicos de unidades básicas de saúde não estão efetivamente preparados pra fazer esse tratamento. E muita gente no país nem sabe que tem hipertensão ou diabetes. Outros sabem, mas não são bem tratados. Acabam desenvolvendo doença renal.

Há dados sobre o assunto?

Um estudo feito pela ABCDT, no ano passado, chama a atenção para a diferença do crescimento de pacientes e procedimentos realizados no âmbito do SUS e na rede privada. Há 11 anos, o SUS atendia a cerca de 78 mil pacientes — que realizavam 12 milhões de procedimentos anuais —, e a rede privada tinha 7,3 mil pacientes, com 1,3 milhão de sessões de diálise por ano. De lá para cá, houve crescimento de 33% no SUS, chegando a 17,5 milhões de procedimentos para quase 104 mil pacientes. Já na rede privada, o incremento foi de 108%, passando para cerca de 2 milhões de procedimentos em quase 15 mil pacientes até o ano de 2021. É estranho que o número de pacientes da diálise pública não tenha crescido na mesma proporção do privado. Nos leva a pensar em falta de diagnóstico. As pessoas perdem a vida antes mesmo de terem a chance de serem tratadas.

*Estagiária sob a supervisão de Andreia Castro

 

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