O mercado bilionário da inteligência artificial (IA) tem atraído talentos brasileiros com salários muito acima da média para engenheiros, matemáticos e outros profissionais que se destacam na área.
Mas nem todos os envolvidos com esta tecnologia estão em uma posição invejável.
Há todo um contingente de trabalhadores terceirizados que fazem um trabalho manual laborioso, ganham menos da metade de um salário mínimo, em média, e, por isso, têm mais de um emprego para conseguir pagar as contas — mas são essenciais para que os sistemas de IA sejam capazes de operar.
Os chamados “operários de dados” são considerados “trabalhadores fantasmas” porque executam nos bastidores uma série interminável de microtarefas para refinar as inteligências artificiais.
“Os sistemas de IA requerem muito trabalho humano manual e discreto para funcionarem, o que evidentemente contradiz a narrativa dominante da progressiva e inexorável automação”, diz a socióloga Paola Tubaro, especializada da ciência da computação e professora e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Economia e Estatística, na França.
“Por isso, empresas de tecnologia e desenvolvedores de IA não se dispõem a divulgar esse tipo de trabalho, que assim permanece escondido, ou seja, ‘fantasma'”.
Mas o que faz um operário dos dados?
“Eles inserem dados para treinar e moderar sistemas e atividades de IA”, explica Rafael Grohmann, professor da Universidade de Toronto que pesquisa o trabalho no mundo contemporâneo.
Esse tipo de atividade ficou conhecida como microtrabalho, pela natureza fragmentada das tarefas envolvidas. O fenômeno é novo, assim como os termos usados para descrevê-lo, diz Grohmann.
“Temos usado muito o termo data workers [operários de dados, em tradução livre do inglês], o que os diferencia dos tech workers [profissionais de tecnologia], que são os responsáveis por produzir, projetar e analisar os dados da IA”.
Na prática, esses trabalhadores (de dados) também podem ser chamados de “treinadores de IA”.
Pegue um sistema como o ChatGPT, por exemplo. Os “treinadores” são responsáveis por alimentar o robô com as informações e dados que ele precisa para responder perguntas de usuários, auxiliar em traduções, fazer pesquisas, dentre outras tarefas.
Praticamente todos os sistemas de IA dependem destes operários de dados. Redes sociais, por exemplo, os contratam para monitorar as postagens e interações e detectar ações que ferem suas regras ou a lei.
Na comparação com uma fábrica tradicional, esses profissionais seriam o chão de fábrica.
“A lógica do que é a classe operária vai mudando com o tempo. Essa é uma nova apresentação do que são os blue-collars [termo em inglês para a classe operária] e os white-collars [os executivos, que estão longe das tarefas manuais]”, diz Grohmann.
Quanto ganha um operário de dados?
Os operários de dados ganham, em média, R$ 583,71 por mês em um emprego, segundo a pesquisa Microtrabalho no Brasil: Quem são os trabalhadores por trás da inteligência artificial.
Esses trabalhadores ganham por cada tarefa concluída e não por hora trabalhada. Segundo o estudo, esse valor médio mensal corresponde a cerca de 15,5 horas de dedicação por semana (cerca de R$ 37,66 por hora, na média).
Segundo um estudo de 2018 da Organização Internacional do Trabalho realizado com 3,5 mil microtrabalhadores de 75 países, a média global de ganho por hora é de US$ 4,43 (cerca de R$ 24, em valores atuais).
Mas, enquanto nos Estados Unidos o valor é maior, de US$ 4,70 (cerca de R$ 25), os operários de dados da África faturam bem menos, US$ 1,33 (cerca de R$ 7) por hora.
No Brasil, de acordo com a pesquisa Microtrabalho no Brasil, o valor gira em torno de US$ 1,60 (cerca R$ 9).
A pesquisa, conduzida por Tubaro junto com o psicólogo brasileiro Matheus Viana Braz e o sociólogo italiano Antonio Casilli, fez uma radiografia da situação do trabalho fantasma no Brasil.
Esse valor fica muito aquém do que os empregadores prometiam a esses trabalhadores que ganhariam realizando estas funções.
Os 477 trabalhadores fantasmas ouvidos pela pesquisa esperavam receber três vezes isso, cerca de R$ 1,6 mil por mês.
Pelo ganho bem abaixo do esperado, eles costumam acumular empregos, por vezes na mesma área, e conseguem com as múltiplas jornadas chegar a uma renda mensal média de R$ 1,8 mil.
O pesquisador em inovação e ciência de dados Mauro Zackiewicz, de 50 anos, que tem um doutorado nesta área, conta que trabalhou por pouco menos de um mês para uma fabricante de celulares recebendo documentos, como áudios triviais, conversas curtas e, por vezes cenas de filmes ou novelas.
“Tinha de corrigir tudo, provavelmente para alimentar de dados um sistema de reconhecimento de voz, mas nem chegaram a me contar para o que fazíamos aquilo”, conta ele.
“Ganhava pouca coisa, dava apenas para a subsistência, e nem tinha contrato, o que é, digamos assim, curioso para uma grande empresa.”
A pesquisa Microtrabalho no Brasil constatou que 66% dessa força de trabalho só ganha o suficiente para pagar as contas mais básicas.
A grande concorrência entre esses trabalhadores é um fator que contribui para os salários baixos, explica Tubaro.
“As plataformas querem garantir mão-de-obra suficiente para atender picos de demandas. O resultado é que, na maior parte do tempo, há excesso de trabalhadores e, por consequência, muita competição entre eles”, explica a socióloga.
Isso significa que, na prática, os operários de dados não conseguem bater as metas estabelecidas pelos empregadores e, como são remunerados de acordo com isso, ganham valores reduzidos por cada hora trabalhada.
Quem são os trabalhadores fantasmas?
A pesquisa Microtrabalho no Brasil constatou que há muitas pessoas com diploma universitário fazendo esse tipo de serviço.
Dos quinze participantes selecionados para entrevistas, como uma amostra representativa do setor, treze eram formados em cursos variados, como direito, administração, ciências da computação e fisioterapia.
Sete em cada dez trabalhadores deste mercado têm entre 18 e 35 anos, segundo o estudo. De cada cinco, três são mulheres.
A maioria mora nos Estados de São Paulo (28,8%), Rio de Janeiro (12,6%) e Minas Gerais (9,7%).
O estudante Gustavo Luiz, de 19 anos, se divide entre o curso de inteligência artificial da Universidade Federal de Goiás, e o emprego como operário de dados.
“Estou trabalhado no desenvolvimento de um sistema de IA para analisar sentimentos expressos em textos e frases em português”, conta ele.
“Esse modelo vai receber dados e tentar encontrar padrões, como de sentimentos, em comentários nas redes sociais.”
Por ser um fenômeno detectado mais recentemente, não há dados precisos sobre o aumento da demanda por esse tipo de trabalho no Brasil.
Mas ofertas do tipo em plataformas de trabalho, como a rede social LinkedIn, têm se multiplicado. Para começar a trabalhar com isso, normalmente basta se cadastrar em um site e seguir as orientações.
Guilherme Graper, de 24 anos, conta que trabalha em uma plataforma da Amazon, mas contratado por outras empresas.
“Por exemplo, tem uma demanda de colocar nomes de médicos nesse sistema para treinar uma IA para pesquisar por médicos em toda a internet”, explica.
Os ganhos variam muito. Guilherme diz que já chegou a tirar em um mês apenas R$ 300, mas também já ultrapassou a casa dos R$ 5 mil. Em média, ele calcula que ganha cerca de R$ 2 mil mensais.
Trabalhadores terceirizados do ‘Sul global’
Na maioria dos casos, as empresas que contratam trabalhadores fantasmas prestam na verdade serviços para outras bem maiores.
Gigantes de tecnologia, como Meta (do Facebook e Instagram) e a OpenAI (do ChatGPT) subcontratam os seus operários de dados.
“Trata-se de uma realidade do Sul Global [termo que designa países mais pobres, a maioria localizada no hemisfério sul]. São trabalhadores na Venezuela, na Colômbia, no Quênia”, ressalta Grohmann.
Apesar de estarem distantes dos maiores centros mundiais de tecnologia, como o Vale do Silício californiano, usualmente os operários de dados treinam IAs de propriedade das grandes marcas do setor.
“A distância não é somente geográfica, como também linguística e cultural. Geralmente, essa distância leva a redução de custos para as empresas do Vale do Silício, mas resultam em baixa qualidade”, comenta a socióloga Paola Tubaro.
Tanto a terceirização quanto a falta de regulamentação da profissão levam também, segundo Tubaro, a “práticas sob condições indesejáveis, com precariedade, baixos pagamentos, falta de reconhecimento, informalidade e, como em casos de moderação de conteúdo em redes sociais, riscos à saúde mental”.
“Os moderadores de conteúdo das redes sociais ainda estão expostos a riscos psicológicos”, completa Tubaro.
Isso por efeito do contato diário com imagens de crueldade, crimes e outras atrocidades que são detectadas pelo algoritmo dessas plataformas e, depois, repassados para avaliação humana.
É aí que atuam os moderadores: no pente-fino do que pode ou não ser publicado em redes sociais.
Já há, contudo, iniciativas que visam regulamentar esse trabalho. É o caso do projeto global Fairwork, coordenado pelo instituto Oxford Internet e pelo Centro de Ciências Sociais WZB Berlin.
Presente em 38 países de cinco continentes, inclusive no Brasil, a organização denuncia abusos relacionados aos trabalhadores de dados, além de propor soluções.
Em todo o mundo, a Fairwork afirma ter convencido 64 empresas de tecnologia a implementar um total de 300 mudanças em políticas internas, como de salários mínimos para a categoria.
A organização é influente principalmente na Europa, mas também tem presença no Brasil, onde tem atuado em prol da criação de leis para regularizar essa categoria de trabalhadores.
A Fairwork destaca em seu site que está “envolvida com o grupo de trabalho tripartido do governo (brasileiro) que procura elaborar um projeto de lei para proteger os direitos dos trabalhadores”.
Além de atuar no Congresso em favor de leis que garantam mais direitos trabalhistas, a organização produz relatórios que denunciam o cenário no Brasil.
O documento, divulgado em 2023, apontou que, em uma análise de onze empresas do setor, apenas duas conseguiam garantir ao menos um salário mínimo de pagamento a estes trabalhadores.
Tubaro avalia que estas iniciativas podem ajudar a combater condições de trabalho que são consideradas precárias.
A pesquisadora destaca como bons exemplos leis recentemente aprovadas na Alemanha e na França e que, segundo avalia, “exigem que pelo menos as grandes empresas exerçam a devida diligência no respeito dos direitos humanos e laborais ao longo de suas cadeias de abastecimento”.
Trata-se de um problema global. A Fairwork produz relatórios sobre os cenários para os microtrabalhadores em 36 países, tanto em desenvolvimento, como Argentina, Quênia e Índia, quanto desenvolvidos, como França e Estados Unidos.
Segundo um desses relatórios, 16% dos trabalhadores americanos realizam alguma forma de microtrabalho, mesmo que como renda secundária. É o país que lidera o ranking neste quesito.
Dentre a atuação de treze empresas nos Estados Unidos, apenas 3 alcançaram os critérios estabelecidos para serem consideradas como ambientes de trabalho justos.
“Há custos globais para esse rápido desenvolvimento e pelo aumento da presença da IA”, afirma o pesquisador Rafael Grohmann. “Mas há especificidades para cada país e isso exige atenção”.
Em países como os Estados Unidos, esses trabalhadores costumam atuar mais, por exemplo, como motoristas de Uber.
“As tarefas mais precárias, como as de moderação de conteúdo, costumam ser terceirizadas para nações da África, da Ásia e da América Latina”, diz Grohmann.
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