A cera de carnaúba é um produto do qual você talvez nunca tenha ouvido falar, mas quase certamente já consumiu – ela é adicionada aos doces para evitar que derretam, aos comprimidos para facilitar a ingestão e a produtos de maquiagem como batom e rímel para engrossá-los.
Trabalhadores do Piauí dependem da colheita de cera das palmeiras de carnaúba para viver. Mas o mercado em torno desse setor está nas mãos de grandes empresas que, segundo as autoridades, fecham os olhos para a exploração dessas pessoas.
Sete carros viajam em comboio pela caatinga. Nos veículos estão fiscais do Ministério do Trabalho, da Polícia Federal e do Ministério Público.
Trata-se da parte final de operação que englobou vários meses de investigações secretas no terreno sobre as condições de trabalho na indústria da cera de carnaúba.
Gislene Melo dos Santos Stacholski, da Conatrae (Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo ) do Ministério do Trabalho, lidera a operação. Ela faz parte de uma unidade móvel que realiza operações para resgatar pessoas que trabalham em condições análogas à escravidão no Brasil.
Ela faz isso há 11 anos e as plantações de carnaúba ocupam grande parte do seu tempo.
“A colheita de carnaúba é uma atividade penosa porque as condições de trabalho sob o sol no Nordeste não são fáceis”, diz Gislene. “É um trabalho extremamente manual, pesado, com uso de ferramentas manuais.”
As palmeiras de carnaúba estão espalhadas por todo o Piauí, maior produtor mundial da cera, e por vários Estados vizinhos. A indústria sustenta a vida de cerca de meio milhão de brasileiros, colhendo a cera em condições universalmente difíceis.
No ano passado, 114 trabalhadores foram resgatados de plantações de carnaúba, mostram dados do governo brasileiro – um recorde nos últimos nove anos.
Os números sugerem que o trabalho análogo à escravidão é um problema crescente em todas as indústrias do país, atingindo o número mais elevado desde 2009, com 3.190 resgates.
O Código Penal brasileiro define como trabalho análogo à escravidão não apenas o trabalho forçado, mas também a servidão por dívida e condições de trabalho degradantes e longas horas de trabalho que colocam em risco a saúde dos trabalhadores.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), tais condições são comuns nas áreas rurais do Brasil e estão intimamente ligadas à pobreza.
Depois de três horas de estrada, chegamos a um bloco de alojamento – com teto tão baixo que em alguns trechos não dá para ficar de pé. Há paredes com gesso esfarelado e tomadas elétricas vazias. Do lado de fora, os porcos rolam na água suja jogada fora da cozinha.
A pouca distância, encontramos a maior parte dos trabalhadores sentados debaixo de uma grande árvore, protegidos do sol do meio-dia.
“Quem está no comando aqui?” pergunta Gislene. Alguns murmuram um nome. Outros estão vestindo camisetas verdes que denunciam: “EDMILSON PALHAS”. Mas Edmilson não está em lugar nenhum.
Um por um, os inspetores entrevistam os homens. Dos 19, apenas dois estão registrados oficialmente. O resto trabalha em troca de dinheiro em espécie, recebendo 70 reais por dia – que guardam para suprir as necessidades nos meses fora do período de colheita, quando muitas vezes cuidam das suas próprias plantações.
“Está muito calor”, diz Irismar Pereira, um dos trabalhadores sem carteira assinada. “Paramos um pouco porque se não o sol ia nos matar – não podemos lidar com tanta coisa.”
Árvore que arranha
Gislene observa que uma das garrafas de plásticos de água tem os dizeres “somente com receita médica” estampados, indicando que os trabalhadores estão bebendo de um frasco velho de remédio.
Depois de um almoço minguado – arroz e pés de galinha – os homens voltam ao trabalho. Usando foices artesanais presas à ponta de uma vara de bambu, eles cortaram as folhas do topo das palmeiras.
A palavra carnaúba é derivada do tupi e significa “árvore que arranha”. É preciso usar luvas para evitar lesões.
Vários trabalhadores afirmam não ter recebido nenhum equipamento de segurança: “Se você for cadastrado, o patrão compra equipamento de proteção para você”, explica José Airton aos policiais. “Mas no meu caso, tive que comprar o meu.”
É um trabalho difícil e perigoso – e os fiscais apontam que os trabalhadores parecem ter pouca instrução sobre como desempenhá-lo.
De volta ao alojamento, o patrão, Edmilson da Silva Montes, apareceu. Ele está com raiva por ter sido pego.
“O governo precisa dar mais chances aos pequenos produtores como eu”, diz ele. “Já faz algum tempo que luto para sobreviver. Os custos de produção desta cera são maiores do que recebo.”
Monte foi multado em quase R$ 150 mil — incluindo verbas rescisórias, multa por dano moral individual e dano moral coletivo.
Ao todo, foram identificadas 15 infrações, incluindo por condições de trabalho análogas à escravidão, falta de registo dos trabalhadores, não fornecimento de roupas de trabalho adequadas, falta de água potável, fornecimento de eletricidade inseguro, contratação ilegal de trabalhadores, alojamento precário e condições insalubres.
Mas Edmilson está convencido de que está dando o melhor de si, apesar de esta ser a terceira vez que é pego pelas autoridades.
Após um interrogatório, Gislene avisa aos trabalhadores que eles estão livres para voltar para casa. Poucos deles estão felizes: apesar das más condições de trabalho, há pouca escolha — esta é a única forma de ganharem dinheiro.
As autoridades dizem que o elevado nível de informalidade na indústria torna uma tarefa difícil rastrear a origem da cera de carnaúba até às grandes empresas.
Em 2016, o Ministério do Trabalho, preocupado com o número de trabalhadores que estavam sendo resgatados em condições difíceis, pediu às cinco maiores empresas de processamento de cera que assinassem um acordo de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) se comprometendo a melhorar as condições na cadeia de abastecimento e a acabar com a informalidade.
A maior processadora oficial é a Brasil Ceras, empresa que tem a L’Óreal como um de seus clientes.
Segundo as autoridades brasileiras, os produtores que empregaram trabalhadores em condições análogas à escravidão afirmam que venderam cera à Brasil Ceras, mesmo depois de a empresa ter assinado o acordo com as autoridades.
Mas não há nenhum documento ligando esses produtores à Brasil Ceras.
O Ministério do Trabalho afirma que uma explicação é que, legalmente, os pequenos produtores que trabalham como uma unidade familiar não têm de apresentar um registo em papel quando vendem a sua cera. E a Brasil Ceras afirma que só compra de famílias e empresas que comprovem que cumprem as leis trabalhistas.
Já a L’Óreal disse à BBC que está comprometida com o fornecimento ético e tem um programa de auditoria com seus fornecedores para garantir a devida diligência.
Mas a polícia e os procuradores argumentam que, apesar de se comprometerem com um fornecimento responsável, nenhuma empresa que compre da indústria da carnaúba — grande ou pequena — pode afirmar ter uma cadeia de produção limpa devido à informalidade generalizada da colheita.
“As empresas que investigamos que transformam o pó de carnaúba em cera e vendem para as multinacionais, garanto que apesar de assinarem compromissos de responsabilidade social, não se importam como deveriam”, diz a investigadora da Polícia Federal Milena Caland, que mora no Piauí.
“Das investigações que estou trabalhando, nenhuma é de fornecedores registrados — é tudo ilegal”.
A inspetora Gislene Melo dos Santos Stacholski acha que sem o apoio da indústria estrangeira — quase toda a cera produzida no Brasil é exportada — pouco se pode fazer.
“A precariedade vem de cima para baixo”, diz ela. “Existe o que chamamos de cegueira deliberada. É confortável para a indústria não ver os problemas, porque não precisa agir, não precisa investir, não precisa pagar.”
Reportagem adicional de Jéssica Cruz
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