Cinco dias após as chuvas que inundaram o Rio Grande do Sul, Zoraia Câmara diz que vai embora da cidade de São Sebastião do Caí, uma das mais afetadas e que fica a 59 km da capital Porto Alegre.
Com 64 anos, a corretora de imóveis já havia perdido tudo na enchente de novembro de 2023.
Abrigada na casa de uma parente no alto do morro, ela conta que a região encontra-se praticamente sem luz. Para falar com a reportagem, Câmara precisou carregar o telefone celular na casa de uma amiga.
Segundo informativo da Defesa Civil do Rio Grande do Sul, o nível do Rio Caí subiu 19cm em uma hora na última quinta-feira (02). O órgão também emitiu um alerta para que moradores de áreas adjacentes ao rio deixem suas residências.
“De uns anos para cá as enchentes começaram a aumentar. Na vez passada bateu na parede, desta vez chegou ao teto. Não consegui tirar nada. Agora estava finalmente comprando as coisas que perdi na enchente passada, geladeira, impressora…”, conta a moradora.
Embora a casa da corretora não seja na beira do rio, mas sim na região central da cidade, a família inteira está desabrigada.
“Meu filho foi resgatado na quarta-feira à tarde com sua esposa e mais 2 cachorros por civis voluntários, estavam a noite toda no telhado”.
Quando perguntado o que faria daqui para frente, Câmara afirma que vai embora da cidade, pois, além de perder tudo, a corretora afirma que não há linhas de crédito para financiamento de áreas alagadas e ninguém mais quer investir na cidade.
“Já não fui embora da última vez. Agora vou para Porto Alegre, não tenho mais o que fazer aqui”.
Comunidades em xeque
“Queria convencer as pessoas a ficarem no Vale do Caí, a não desistir”, disse a comerciante Fabiana Sussenbach à BBC News Brasil.
Ela explica que muitas pessoas já deixaram a região em novembro do ano passado e que seu pet shop – o qual construiu em 2023 – foi destruído nas enchentes desta semana.
“Na vez passada foi 90cm de água, agora, 2 metros. Não tenho nem noção do estrago porque não consigo chegar ao local”, reflete ela.
Sussenbach comenta que a sensação é um misto de tristeza e indignação, pois “já são anos de enchente e nada foi feito, nós comerciantes não temos ajuda para nos reerguer. Vim para cá porque amo essa cidade, queria um lugar tranquilo para criar meu filho, ter meu comércio. Não sei se vou conseguir reabrir”.
Assim como em São Sebastião do Caí, o prefeito de Muçum, Mateus Trojan, afirma que é difícil a permanência da comunidade no município.
Isso porque a cidade já havia sido afetada três vezes durante 2023 – a primeira em junho, que vitimou 16 pessoas no estado; em setembro, quando 53 pessoas morreram em decorrência da passagem de um ciclone extratropical; e em novembro, quando mais de 700 mil pessoas foram afetadas por chuvas torrenciais.
Porém, Trojan afirma que nunca viu nada igual ao que está acontecendo desta vez: além das fortes chuvas houve pontos nunca antes alagados e deslizamentos de terra no município, fazendo com que a cidade ficasse ilhada em meio a tragédia.
Um trecho da RS 129, que liga Muçum a Vespasiano Corrêa, cedeu e bloqueia por completo o acesso ao município.“Situação caótica e se agravando”, define o prefeito.
Segundo dados do Serviço Geológico do Brasil, a medição do nível do Rio Taquari na cidade ultrapassou a marca de 24 metros por volta das 16h do dia 01 de maio. Foram 67 centímetros no intervalo de uma hora. A cota de inundação na cidade é de 18 metros
“Estamos quase incomunicáveis. Precisam de mantimentos, mas há muita dificuldade de auxílio externo”, desabafa Trojan.
Nas redes sociais, o governador do estado, Eduardo Leite, chegou a comparar as chuvas no Estado a um cenário de guerra. “Precisamos da participação efetiva e integral das Forças Armadas na coordenação deste momento, que é como o de uma guerra. Não temos um inimigo para ser combatido, mas temos muitos obstáculos”, escreveu em publicação no X (antigo Twitter).
Leite também citou diferenças entre os temporais de setembro e novembro de 2023 e os que acontecem agora. Ele disse que nos eventos climáticos do ano passado foi possível viabilizar o uso de aeronaves já no dia seguinte para providenciar os resgates.
Na casa do prefeito e da maioria dos residentes de Muçum não há água, luz e telefone. “Nossa gestão passa pelo quarto evento climático em menos de um ano. É difícil argumentar a permanência da população. As pessoas estavam finalmente se recuperando do desastre de novembro de 2023, reformando as casas, e aconteceu isso de novo”, comenta.
População idosa corre mais risco
A corretora Zoraia Câmara tem mais de 60 anos, mas tanto ela como sua mãe, de 90, estão abrigadas na casa de parentes.
Com a situação das enchentes, a população mais vulnerável para risco de hipotermia são os idosos.
A queda da temperatura do corpo pode resultar em graves problemas de saúde como um ataque cardíaco, em uma lesão hepática ou morte, segundo a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
Além disso, o estado do Rio Grande do Sul foi o que teve o maior aumento da população de idosos nos últimos 10 anos, de acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A população total do estado é de 10.882.965, sendo 14,1% acima dos 60 anos.
O boletim divulgado pela Defesa Civil do Estado do Rio Grande do Sul atualizado na manhã desta sexta-feira (03) confirmou 31 pessoas mortas, 56 feridas e 74 desaparecidas em todo o estado.
Gilberto Laubim, ex-funcionário da defesa civil da região do Vale do Caí, diz ajudar os moradores como pode.
“Não acho, tenho certeza que essa chuva foi muito pior do que as do ano passado. Há muitos idosos sendo resgatados e tendo dificuldade de sair das suas casas”, fala.
Hoje aposentado, Laubim precisou dormir em uma caminhonete no primeiro dia de chuva, pois sua casa está com água até as janelas.
“Acredito que vamos embora. Já foi difícil se recuperar do ano passado, não quero ter que passar por isso de volta daqui a dois ou três meses”.
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